Obra de Hein Semke “volta a casa” com doação ao Museu de Portimão

O artista plástico alemão Hein Semke era um apaixonado pela Praia da Rocha, desde 1969, quando começou a frequentar a […]

Hein SemkeO artista plástico alemão Hein Semke era um apaixonado pela Praia da Rocha, desde 1969, quando começou a frequentar a estância balnear. Isso aconteceu mais de 30 anos depois de ter deixado a sua Alemanha natal, nos anos 30 do apogeu de Hitler, trocando-a por Portugal, onde a sua arte e a sua maneira de ser também não lhe granjearam amizades entre os do regime.

A sua viúva, a poetisa portuguesa Teresa Balté, ofereceu agora ao Museu de Portimão um valioso conjunto de 359 obras de escultura, cerâmica, pintura, gravura, desenho e colagem, na sua maioria de temática marítima, bem como algumas publicações e utensílios de trabalho do escultor, que faleceu em Portugal em 1995.

De tal modo que, além da Fundação Gulbenkian, em Lisboa, o Museu de Portimão passa a ser o detentor da maior coleção deste artista, que se radicou em Portugal em 1932, trazendo à vida artística portuguesa uma inovadora e importante dimensão expressionista. Entre outros, foi contemporâneo e amigo de Almada Negreiros, Sarah Affonso, Júlio dos Reis, Vieira da Silva, Árpád Szenes e Mário Eloy.

Mas porquê escolher o Museu de Portimão para doar um tão grande conjunto de obras?, perguntou o Sul Informação a Teresa Balté.

«A partir da Primavera de 1969, e pelo menos até 1990, Hein Semke passava regularmente uma ou mais vezes por ano temporadas no apartamento que meus Pais, o médico António H. Balté e a professora Teresa Balté, tinham no Edifício Miramar, na Praia da Rocha», contou.

«Por vezes levava papel, pincéis e aguarelas e fazia pequenos esboços, alguns dos quais, do Verão de 1969, doei ao Museu de Portimão (D69/5,1 a D69/5,6; e D69/6,1 a D69/6,27)», acrescentou Teresa Balté, na entrevista que concedeu, por email, ao nosso jornal.

«Dos seus 34 livros de artista, os livros “Fische – ja – Fische” (“O Pequeno Livro dos Peixes”) e “Fische und Fische” (“Peixes e Peixes”), ambos do Verão de 1969, foram talvez inspirados pela recente estadia na Praia da Rocha, naturalmente associada à memória de anteriores temporadas passadas nas Berlengas e no Portinho da Arrábida, onde acampara durante largos períodos, e ainda na Salema, em Mil Fontes e em Porto Covo – sempre mergulhando, observando a fauna e flora marinhas e associando-se à atividade dos pescadores», acrescentou.

Escultura Sereia
Escultura doada ao Museu de Portimão

José Gameiro, diretor científico do Museu de Portimão, não esconde o seu entusiasmo por esta doação e garante que, «na base desta doação, que coloca o Museu de Portimão como detentor de um importante espólio artístico de temática ligada ao mar, pesou certamente não só a forte valência museológica industrial e marítima da instituição, mas também a ligação pessoal do escultor à Praia da Rocha, onde, desde 1969, frequentemente passava longas temporadas».

Para mais, sublinha, «tendo em conta o currículo de Hein Semke, a inegável relevância do espólio e o seu significado no panorama cultural e artístico nacional e internacional, esta doação foi acolhida com o maior empenho, sendo um precioso contributo para a valorização das coleções e da temática do Museu e do Município de Portimão».

No próximo ano, anunciou Gameiro em declarações ao Sul Informação, o Museu promoverá uma primeira grande exposição com o espólio agora recebido. Mas muitas outras iniciativas se sucederão, já que «não é todos os dias que temos a sorte de receber uma doação com esta dimensão e importância, até em termos de história da arte em Portugal e na Europa».

Em vida, o conjunto da obra de Hein Semke foi objeto da exposição antológica «Hein Semke, 40 anos de actividade em Portugal», na Fundação Calouste Gulbenkian, em 1972, e a produção cerâmica de uma retrospetiva no Museu Nacional do Azulejo, em 1991.

Já em 2005, no 10º aniversário da sua morte, teve lugar uma exposição disseminada de obras de Semke, que teve lugar quase em simultâneo no MNAC-Museu do Chiado, Museu Nacional do Azulejo, Fundação Árpád Szenes-Vieira da Silva, Biblioteca Nacional de Portugal e Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Gulbenkian.

Numa foto de 1988, o surrealista português Cruzeiro Seixas, com Francisco Pereira Coutinho, da Galeria de São Mamede, e Hein Semke
Numa foto de 1988, o surrealista português Cruzeiro Seixas, com Francisco Pereira Coutinho, da Galeria de São Mamede, e Hein Semke

Será neste último local, em Lisboa, que já em Novembro próximo terá lugar uma outra exposição, organizada, segundo Teresa Balté, «na sequência de uma doação de obras suas que fiz à Fundação Calouste Gulbenkian e por ocasião dos 20º aniversário da sua morte».

Hein Semke realizou para cima de 40 mostras individuais e participou em mais de 70 coletivas. Com uma obra vastíssima, encontra-se representado no MNAC-Museu do Chiado, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão (Fundação Calouste Gulbenkian), Museu Nacional do Azulejo, Museu Nacional Soares dos Reis e em numerosas coleções particulares.

Na capital, tem trabalhos na Igreja Evangélica Alemã de Lisboa, na Reitoria da Universidade de Lisboa, no Hotel Ritz, no jardim da Fundação Calouste Gulbenkian, etc.

No Algarve, além de peças em coleções privadas e do espólio agora doado ao Museu de Portimão, pouco mais haverá. Há pouco tempo, quando o Hotel Garbe, de Armação de Pêra, se transformou em Holiday Inn, a composição cerâmica que estava numa das paredes interiores dos espaços comuns do edifício foi retirada. Menos sorte teve o painel de cerca de 13 metros realizado para o Hotel da Baleeira, em Sagres, que, segundo revelou Teresa Balté ao Sul Informação, «foi destruído quando da remodelação do hotel».

Por isso, o facto de uma parte tão significativa do espólio do artista alemão passar agora a integrar o Museu de Portimão e as exposições e outras iniciativas que serão promovidas com base nessa doação, é uma espécie de justiça que é feita a Hein Semke, pela terra de que tanto gostou.

Como escreveu Semke nos seus «Diários», em 20 de Julho de 1973, «os belos dias sucedem-se como um colar de pérolas preciosas. A Resa e eu preguiçamos, lemos, jogamos às cartas, etc. Hoje alugámos um barco a motor e fomos na direção de Alvor. A costa é profundamente recortada mas magnífica para os olhos. Num dos próximos dias tencionamos ir, ou melhor, pedir que nos levem na direção oposta. Preguiçar faz-nos muito bem a ambos. Dentro de 10 dias temos de regressar a casa. Quero aproveitar o tempo quente de verão para fazer gravura».

 

 

Web
Obras doadas ao Museu de Portimão

Alguns excertos do “Diário“ de Hein Semke, que referem a Praia da Rocha (tradução de Teresa Balté):

1970
21 de Junho de 70
Há 10 dias que estamos na Praia da Rocha […]

 

1971
22 de Ag.
Desde quinta-feira que estamos na Praia da Rocha. Faz um tempo esplêndido. – Já fomos à praia […]
Hoje, domingo, é a festa anual dos pescadores da região em honra de Santa Catarina. A praia elegante encontra-se hoje cheia de gente de todas as origens sociais.
27/8
Estamos aqui há mais de uma semana. Tivemos sempre bom tempo. Tomar banho de mar ainda não tomei. Tão pouco muitos banhos de sol […] Ando preguiçoso. Também não quero pensar no meu trabalho. – Apenas descansar. –
29/8
A praia hoje parecia um formigueiro. – Andámos pela beira-mar só entre as 8 ½ e as 11, depois refugiámo-nos na frescura da casa. – À tarde levantou-se um vento forte que nos estragou a ida à praia […]

 

1973
16/7/73
Esta manhã choveu. Demos um passeio no molhe. Foi bom; só que infelizmente não havia vento e fomos atormentados por minúsculas mosquinhas.
Pelas 8 horas da tarde
À tarde o tempo melhorou. Céu azul – sol – mas o mar estava mais agitado do que ontem. Demos um passeio de cerca de hora e meia. O sol brilhava suave e agradável e havia um pouco de vento, no entanto o pequeno passeio cansou-me […]
Está uma tarde de verão amena e maravilhosa –.
20/7
Os belos dias sucedem-se como um colar de pérolas preciosas. – A Resa e eu preguiçamos, lemos, jogamos às cartas, etc. – Hoje alugámos um barco a motor e fomos na direcção de Alvor. – A costa é profundamente recortada mas magnífica para os olhos. Num dos próximos dias tencionamos ir, ou melhor, pedir que nos levem na direcção oposta. – Preguiçar faz-nos muito bem a ambos. – Dentro de 10 dias temos de regressar a casa. Quero aproveitar o tempo quente de verão para fazer gravura.

 

 

Autorretrato de Hein Semke (1934-1935)
Autorretrato de Hein Semke (1934-1935)
Uma biografia de Hein Semke:
(texto da autoria de Teresa Balté)

 

Nascido em Hamburgo em 1899, Hein Semke seguiu o caminho de tantos dos seus contemporâneos – a emigração. Fixando-se em 1932 em Portugal, onde logo nesse ano apresentou trabalhos na SNBA, em Lisboa, desde então e até à morte, em 1995, não parou de produzir e expor, impondo-se, sem nunca perder as fortes diferenças de origem e sensibilidade, como figura incontornável da vida artística portuguesa.

O percurso deste individualista, que num poema dos anos 30 resume a sua atitude existencial ao perguntar «À minha volta / Máscaras – / Esgares – / Desfigurados / E vazios. / De onde / Me vem / A coragem / De ser / Rosto?», não podia ser fácil.

Aos 12 anos, com a morte da mãe, é internado num orfanato. Em 1916 vai para a guerra como voluntário, combatendo na Ucrânia, França e Flandres. Desmobilizado em 1919, trabalha como pedreiro, estivador, mineiro, vendedor de jornais. Ligado a círculos anarquistas, envolve-se nas revoltas que nos primeiros anos 20 agitam a sua cidade natal. Condenado a seis anos de prisão solitária, é libertado em 1928.

A experiência da guerra e o desencanto das revoluções transformaram-no entretanto num pacifista; ao mesmo tempo a evolução política da Alemanha inquieta-o. Em 1929 embarca para Lisboa, onde se emprega numa fábrica e tenta juntar dinheiro para seguir para o Brasil. Um esgotamento físico leva-o de volta a Hamburgo. Recuperado mas declarado inválido para o trabalho, a impressão que lhe causa a visita a uma exposição de ícones russos e o encorajamento de amigos decidem-no a dedicar-se à escultura. A decisão será para a vida.

Em 1930 estuda na Escola de Artes e Ofícios de Hamburgo com Johann Bossard (escultura) e Max Wünsche (cerâmica). Em 1931-32 na Academia de Belas Artes de Estugarda com Ludwig Habich. Razões de saúde e políticas agora mais prementes levam-no de novo a deixar o país.

Em 1932 fixa-se em Linda-a-Pastora e depressa se relaciona com intelectuais e artistas lisboetas. Conhece Fernando Pessoa, é amigo de Almada Negreiros, Mário Eloy, Vieira da Silva.

Em 1933 expõe com os modernistas portugueses. O antigo activismo político dá agora lugar à criação estética, numa arte essencialmente ética e de auto-conhecimento. Os seus trabalhos, qualificados pela crítica de primitivos, duros e místicos, com reminiscências românico-góticas, revelam a influência do expressionismo de Barlach.

Livros de artista de Hein Semke
Livros de artista de Hein Semke

A relação com a colónia alemã é turbulenta. As três esculturas que em 1935 conclui para o Pátio de Honra dos Mortos da Guerra, da Igreja Evangélica Alemã de Lisboa, tornam-se, quer pelo seu teor anti-heróico quer pelo passado do autor, alvo da censura nazi, que as considera «arte degenerada».

Com o artista ausente em Paris, o grupo Camaradagem na Derrota é destruído e A Dor e A Ascensão do Guerreiro retiradas. Mais tarde serão repostas, mas a Profecia monumental, junto ao Hospital Alemão, é também destruída. Resolvido a protestar junto da Câmara de Cultura do Reich, Semke vai em 1936 a Berlim de onde tem a sorte de regressar ileso.

Em 1941 as medidas de protecção aos artistas nacionais tomadas em Portugal criam-lhe dificuldades económicas. Abandona o atelier da Av. 24 de Julho, em Lisboa, onde ainda nesse ano dedica uma exposição antológica das suas esculturas «a todos os artistas que sofreram com as intolerâncias do seu tempo», e volta-se cada vez mais para a cerâmica como modo de subsistência.

O desvio da escultura pesa-lhe; a brutalidade de mais uma guerra também. Em 1947 faz a primeira exposição individual de cerâmica, na galeria do SNI – peças únicas, marcadamente escultóricas, em barro vermelho, cozidas em forno de fogo aberto. Está definida a segunda etapa do seu percurso artístico, em que se tornará um dos principais renovadores da cerâmica em Portugal.

Em 1949 sai de Linda-a-Pastora, armazena os trabalhos na quinta de um amigo e vive em Lisboa num quarto alugado. Mas até 1953, ano em que consegue instalar-se no modesto atelier onde habitará durante mais de vinte anos, continua a fazer cerâmica, expor individual e colectivamente – em Lisboa, no Porto, na Bienal de São Paulo –, a escrever em revistas. Em 1950 publica o livro de poemas Und…

Painel em cerâmica «Cristo», na Fundação Mário Soares
Painel em cerâmica «Cristo», na Fundação Mário Soares

A obtenção, em 1955, junto com a representação portuguesa, da medalha de ouro do 1.º Festival Internacional de Cerâmica de Cannes e a encomenda de um painel cerâmico de grandes dimensões possibilitam-lhe visitar Hamburgo nesse ano.

Simples viagem de saudade, pois criara raízes em Portugal, de clima mais brando e onde o mar, onde mergulhava, lhe inspirava formas e cores para os trabalhos.

Em 1957 faz os murais para o Hotel Ritz; expõe máscaras. Apesar do labor intenso e mostras frequentes vende pouco – embora admiradas, as suas obras não se enquadram no decorativismo amável do gosto corrente. Em 1962 faz o mural, hoje destruído, para o Hotel da Baleeira, em Sagres. Uma silicose obriga-o em 1963 a abandonar a cerâmica.

A terceira etapa do seu percurso centra-se noutros meios de expressão plástica: a monotipia, a pintura sobre madeira talhada, a xilogravura, a aguarela; de novo a escultura.

Em 1966 um subsídio da FCG permite-lhe realizar os grandes óleos sobre a necessidade da fé, que expõe no SNI em 1967. Em 1972 a Gulbenkian organiza uma retrospectiva geral da sua obra. Em 1977 uma visita à Noruega e às ilhas Lofoten inspira-lhe um notável ciclo de monotipias. Entre 1958 e 1986 realiza trinta e quatro livros de artista, que reúnem textos, pinturas, gravuras e colagens e que desenvolvem os seus temas recorrentes – a reflexão religiosa, política e estética, a celebração da mulher e do amor, o encantamento pela natureza, flores, árvores, peixes, a sátira social, também auto-sátira – numa quase súmula da sua visão forte, emotiva e afirmativa do mundo.

Em 1991 o Museu Nacional do Azulejo apresenta uma retrospectiva da obra cerâmica. Nesse Verão revisita as Lofoten. Em 1995 expõe ainda trabalhos dos dois últimos anos de vida.

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