O busto que Faro usurpou e que deixou meio Algarve em alvoroço! (II)

Ao contrário de São Bartolomeu de Messines, Faro rejubilou com publicação da Portaria, de 15 de Novembro de 1929, atribuindo […]

Monumento (postal ilustrado)
Um postal antigo mostrando o busto de João de Deus, frente ao Governo Civil, em Faro

Ao contrário de São Bartolomeu de Messines, Faro rejubilou com publicação da Portaria, de 15 de Novembro de 1929, atribuindo à cidade o monumento a João de Deus.

Pouco depois, a Câmara Municipal farense definia o Jardim Manuel Bívar, em frente ao Governo Civil, como o local para a colocação do busto, em detrimento da Alameda João de Deus.

As fundações iniciaram-se a 6 de Janeiro de 1930, ficando concluídas a 23 de Fevereiro, procedendo-se ao ajardinamento do espaço nos dias seguintes. A cidade ganhava a sua segunda estátua, depois do obelisco a Ferreira d’Almeida, inaugurado vinte anos antes.

Nas vésperas de 8 de Março, o monumento, um belíssimo conjunto escultórico, estava concluído. Maria Isabel Cordeiro Laranjo, em “Escultura Pública no Algarve (1900 – 2009)”, descreve-o com detalhe. O busto é da autoria de António Augusto da Costa Mota (tio), ou seja, o mais importante escultor português do século XIX, estando assinado e datado de 1926.

O bronze foi trabalhado com a minúcia habitual dos autores realistas, as particularidades do rosto e as ondulações dos cabelos demonstram uma preocupação em romper com a tradição classicista, que ainda imperava no universo da escultura portuguesa.

Cruz Azevedo e o filho (Notícias Ilustrado - foto Nedel)
Cruz Azevedo e o filho («Notícias Ilustrado» – foto Nedel)

Costa Mota (tio) era exímio, tanto na representação da nobreza e pompa das cenas históricas, como na delicadeza dos motivos carregados de lirismo, e este trabalho evidencia as suas características escultóricas.

Por sua vez, o aprimorado pedestal foi obra de um notável artista farense, o mestre Tomás Ramos. Com inúmeros pormenores, aparenta a forma de uma coluna que se desenvolve, desde a base até ao seu ponto mais alto, em sucessivas camadas que alternam entre a escrita e a iconografia descritiva.

Na base, por cima da frase HOMENAGEM DAS CRIANÇAS DAS ESCOLAS DE PORTUGAL 1930, observa-se um conjunto esculpido na pedra apresentando um livro, uma lira e um ramo de louro.

Por cima da identificação do laureado (A JOÃO DE DEUS POETA E EDUCADOR 1830 – 1896), o pedestal está coroado por uma grinalda de rosas primorosamente esculpidas em calcário. O busto ultrapassa, para a direita e para a esquerda, as dimensões da coluna que o suporta, sugerindo a imensidão da figura ilustre que representa.

O cortejo. Escolas de Faro
O cortejo das escolas de Faro

Na manhã de sábado, 8 de março de 1930, Faro prestava, em nome do Algarve, homenagem ao poeta e pedagogo João de Deus, com a inauguração do monumento.

A família do homenageado e o ministro da Instrução, talvez para evitar mais conflitos, fizeram-se representar, pelo poeta Bernardo Passos e pelo governador civil, respetivamente.

A imprensa regional, com destaque para o farense “Correio do Sul” e os diários nacionais, como “O Século”, deram ampla cobertura ao acontecimento.

O programa iniciou-se com uma alvorada às 6h00 da manhã, pelas filarmónicas de Olhão e de Loulé (Marçal Pacheco). Às 11h00 principiou o cortejo, organizado desde o liceu até à praça D. Francisco Gomes, composto por diferentes entidades, entre as quais a Câmara de Faro, juntas de Freguesia, bombeiros, associações, delegações de outros municípios do Algarve, comissão pró-monumento, escuteiros, professores e alunos de diversos concelhos da região, como Faro (12 escolas), São Brás de Alportel (6 escolas), Olhão (7), Tavira (2), Loulé (9), Vila Real de Santo António (2), bem como da Faculdade de Letras de Lisboa e muito povo.

O desfile, que abria com uma força de cavalaria da GNR e fechava com a Câmara de Faro acompanhada pelo estandarte municipal, bem como a maioria das coletividades, percorreu a rua Manuel de Arriaga (o liceu localizava-se na hoje escola Tomás Cabreira), largo do Pé da Cruz, ruas de Santo António e D. Francisco Gomes, Conselheiro Bívar, Infante D. Henrique, Ventura Coelho, largo da Estação, avenida da República, vindo a terminar junto ao monumento.

Foto Nedel
Cortejo dos estudantes do Liceu, com as suas capas, na Rua D. Francisco Gomes («Notícias Ilustrado», 23 de Março de 1930)

No percurso, as casas particulares e edifícios públicos estavam engalanados com formosas colgaduras, encontrando-se a maioria das montras decoradas com retratos de João de Deus.

Álvaro Lemos, diretor do “Correio do Sul”, verteu para o seu periódico o ambiente que se vivia no jardim, antes da chegada do cortejo: “O jardim encontrava-se vistosamente engalanado. Junto ao monumento, convidados, pessoas de representação, fardas do exército e da marinha, trajes eclesiásticos e de cerimónia. Está o elemento militar largamente representado. (…) representantes de vários países na cidade (…) e muito povo, o mesmo povo de sempre, entusiástico e interessado, contido nas ruas laterais do Jardim, pela Polícia”.

Para acrescentar de seguida: “E principia aproximando-se o cortejo, começa a difícil faina da arrumação das escolas. Vêm os estandartes para a frente, formam à esquerda do monumento, junto à mesa dos oradores. Perto o orfeon do Asilo de Tavira. E inicia-se a cerimónia de inauguração do monumento”.

Discursou o governador civil e momentos depois, quando o filho de Cruz Azevedo, de seis anos de idade, vestido de marinheiro, ia proceder ao descerramento do busto, um grito de alegria ecoou nos ares: “os hidroaviões! Os hidroaviões!”.

Na véspera foi veiculado pela cidade que o ministro da Marinha havia autorizado a deslocação de dois hidroaviões para engrandecer os festejos, todavia eles foram esperados toda a manhã sem sucesso, surgindo na “fase apoteótica da festa”, nas palavras de Álvaro Lemos.

O jardim na inauguração do monumento (Notícias Ilustrado - foto Nedel)
O jardim na inauguração do monumento («Notícias Ilustrado» – foto Nedel)

Sigamos a sua descrição: “Deixam-se aproximar as aeronaves, começam estralejando os primeiros foguetes e as Bandas de Caçadores 4, de Loulé e Olhão rompem com a «Portugueza», na ocasião em que o menino Hélder Cavaco Azevedo faz descer a bandeira nacional que envolvia o busto de João de Deus. O momento é apoteótico, emocionante, grandioso! Há lágrimas em muitos olhos! Uma grande, interminável salva de palmas ecoa e estende-se por toda a Praça D. Francisco Gomes”.

A cerimónia prosseguiu com o discurso do professor José Júlio Rodrigues, e após a assinatura do auto de inauguração, bem como da atuação do Orfeão do Asilo Esperança Freire, de Tavira, iniciou-se o desfile das crianças perante o monumento, juncando-o de flores. “Metade do pedestal está dentro em pouco coberta. João de Deus emergindo dum verdadeiro «campo de flores»”, escreveu o “Correio do Sul”.

De tarde, os festejos concentraram-se no liceu João de Deus, com discursos e atuações musicais, bem como uma “grande manifestação de carinho” a Cruz de Azevedo, dado que a “ele se devia todo o êxito da iniciativa”.

Às 17h00, houve um concerto no jardim pelas filarmónicas e por fim às 20h00 iluminações que, segundo “O Século”, na edição de 9 de março, produziram surpreendente efeito”, com destaque para o Banco de Portugal, casas Tota e Sancho e Leitaria Aliança. Das 20h00 às 22h30, novo concerto, agora pela Banda de Caçadores 4, a que se seguiu um magnífico e abundante fogo de artifício.

O busto de João de Deus, na atualidade
O busto de João de Deus, na atualidade

Mas se Faro comemorava brilhantemente o primeiro centenário do imortal pedagogo, em S. B. de Messines, “o povo absteve-se de se manifestar, pelas justificadas razões que o levaram a tomar tal atitude”, noticiava “O Século”, para depois acrescentar: “Somente as crianças das escolas, com as suas professoras, foram como é costume, e anualmente, prestar a sua homenagem perante a lápide do grande poeta”.

Consta que, depois da inauguração, vários messinenses deslocaram-se propositadamente a Faro, num camião, e munidos de cordas tentaram trazer o busto para Messines, mas a sua localização junto ao Governo Civil, nas imediações da polícia, e o seu peso, impossibilitaram tal intento. A 8 de março de 1964, S. B. Messines inauguraria também o seu monumento ao filho ilustre.

Hoje, volvidos 85 anos da inauguração em Faro do conjunto escultórico a João de Deus, poucos saberão de tão acesa contenda que o rodeou, bem como dos festejos ali ocorridos naquele já longínquo 8 de Março de 1930.

Nas décadas seguintes, a cidade ganhou outros monumentos, mas o busto de João de Deus, pela sua formosura e localização, é ainda hoje um dos mais conhecidos da urbe farense e alvo de tributos frequentes.

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de História Local e Regional

 

 

Leia aqui o primeiro artigo desta “saga”: «O busto que Faro usurpou e que deixou meio Algarve em alvoroço! (I)»

 

Bibliografia:
A estatuária em Faro no século XX, Teodomiro Neto, 1993.
Escultura Pública no Algarve (1900- 2009), Maria Isabel Cordeiro Laranjo, dissertação de mestrado em Escultura Pública.
Poeta e pedagogo Dr. João de Deus – 185 º aniversário do seu nascimento, Exposição patente na Câmara Municipal de Silves, entre 01/03/2015 e 31/03/2015, textos de Vera Gonçalves.
– Ofício do Governo Civil de Faro sugerindo a publicação de um decreto que determine que o busto de João de Deus, natural de Messines, deve ser erguido em Faro por ocasião da comemoração do centenário do seu nascimento. Arquivo Nacional/ Torre do Tombo.
Governo Civil do distrito de Faro, 175 anos de História, Neto Gomes, 2009.
– Jornais diversos, entre 1920 e 1929, com destaque para o “Correio do Sul”, “O Algarve” e “Folha de Alte”. Sobre a inauguração relevo para:
i) Correio do Sul, 15 de março de 1930;
ii) O Século, 8 e 9 de março de 1930;
iii) O Algarve, 9 de março de 1930.
iv) Notícias Ilustrado, 23 de março de 1930.

Comentários

pub