As colónias e os brasões assinalados…

…estão “bué” desactualizados. Fui buscar inspiração para mais esta vilipendiação da obra de Camões a José Sá Fernandes, vereador da […]

gonçalo-gomes-21…estão “bué” desactualizados.

Fui buscar inspiração para mais esta vilipendiação da obra de Camões a José Sá Fernandes, vereador da Câmara Municipal de Lisboa, que seguramente concordaria com a substituição dos dois primeiros versos do Canto I d’Os Lusíadas.

É que este cavalheiro, imbuído de um espírito democrático à moda de gulag, ou do Orwelliano “Triunfo dos Porcos”, é daquelas pessoas que acha que a História se “desactualiza” a gosto e, vai daí, tenta eliminar as partes de que não gosta ou com as quais não concorda. No fundo, é como queimar livros cujas ideias veiculadas não se aceitam.

Prova disto é a intenção da Câmara Municipal de Lisboa de eliminar as composições florais que reproduzem os brasões das ex-colónias que decoram um friso em torno da Fonte Monumental, no Jardim da Praça do Império, em frente ao Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa.

Porquê? Justamente por achar que “estão ultrapassados”. Ao que parece, o ilustre autarca tem vergonha da História de Portugal, concretamente do colonialismo, e vai daí, decidiu que era porreiro vandalizar um monumento nacional.

Aquilo que Sá Fernandes se prepara para fazer, arrastando o Município para a lama, não é novo. Estes actos do mais básico vandalismo estão ao nível dos perpetrados, por exemplo, pelos denominados povos bárbaros aquando das invasões de Roma, em que a destruição dos narizes das estátuas e a conspurcação de monumentos eram formas de afirmação de domínio. E quem diz estes, diz inúmeros outros, dos quais a destruição dos Budas de Bamiyan pelos talibãs em 2001 foi um dos mais recentes e mediáticos casos.

José Sá Fernandes, enquanto cidadão, e tal como todos os cidadãos, tem o legítimo e inalienável direito à sua opinião acerca do colonialismo português, e de toda a longa História de Portugal – pode até questionar a pertinência da Fundação, se quiser! Tem, também legitimamente, uma opinião pessoal, e de gosto, relativamente ao Jardim da Praça do Império e aos restantes monumentos ali presentes. Bom, mau, feio, bonito, tudo isso é matéria da sua consciência e livre arbítrio, relativamente à qual nada nem ninguém tem o direito de interferir.

Já o Vereador José Sá Fernandes, enquanto autarca eleito pela população, tem o dever de zelar pela preservação do património e da identidade da cidade de Lisboa, não apenas enquanto núcleo urbano por si só, mas também como capital do País e repositório de muita da História deste mesmo País. E desse património, dessa identidade, e dessa História, sem dúvida que faz parte o Colonialismo. Muito mais ainda do Jardim da Praça do Império, construído por ocasião da Exposição do Mundo Português, em 1940, e destinado a celebrar, justamente, o Portugal Metropolitano e Ultramarino.

Isto sem falar do valor patrimonial intrínseco do conjunto do jardim, dentro do quadro da História da Arte dos Jardins em Portugal.

O problema é que muitos dos nossos titulares de cargos de decisão política têm justamente este desprezo pela História e pelo património que perpetua a sua memória. Pior, entendem os mandatos, que lhes são conferidos pelo voto, como uma carta de alforria para a implantação do seu gosto pessoal, da sua ideologia ou dos interesses de uma qualquer clique faccionária.

Sá Fernandes, mais do que uma personificação demoníaca do iconoclasta, encarna aqui uma personagem-tipo, bem à moda das peças de Gil Vicente.

É pá, mas são só uns canteiros”, poderão alguns (que não vou sequer adjectivar) dizer. Pois é. Mas o que está em causa é o princípio. Até porque, se tolerarmos a eliminação dos canteiros, o que impede que a ira anti-patrimonial da luminária pensante se vira contra os Jerónimos, ou contra o Padrão dos Descobrimentos (esperemos que não se lembre que foi também erigido para a Exposição do Mundo Português!), por achar que estão “ultrapassados”?

Ou que outro qualquer déspota iluminado ache que a Escrita do Sudoeste está “out”, ou que as ruínas de Milreu são tão possidónias que até chateia ou que os Monumentos Megalíticos de Alcalar não são “trendy” nem “hipster” que chegue para o Portugal modernaço, com Wi-Fi e Bluetooth?

A História de um País não fica “ultrapassada”. Evolui, acrescenta, progride. O que fica para trás são as bases sobre as quais se constrói a nossa identidade, e não despojos ao sabor dos desmandos de um qualquer aspirante a déspota iluminado que, não gostando de determinado aspecto da História, ou com ele não concordando, decide apagá-lo.

Enquanto a pobreza de espírito dos nossos decisores for tal que não aceitem a História como fonte de aprendizagem, de debate e de discussão, para que possamos progredir em direcção ao futuro com bases sólidas, erigidas sobre as lições do passado, não estou bem a ver o que nos espera.

Ou, pior ainda, estou: mais do mesmo.

Recuperando duas expressões célebres, também elas desactualizadas, rematarei pedindo ao Zé (denominação popularucha e muito actualizada que o próprio em tempos adoptou) e a todos os outros Zés afins, “A Bem da Nação, obviamente demita-se“.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

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