A insustentável leveza da lei

Viver em sociedade, sendo uma coisa globalmente porreira, tem as suas chatices. Uma das principais é a necessária existência de […]

gonçalo-gomes-21Viver em sociedade, sendo uma coisa globalmente porreira, tem as suas chatices.

Uma das principais é a necessária existência de regras de convivência e respeito pelo próximo que, não poucas vezes, nos impedem de seguir o nosso livre arbítrio, que é como quem diz, nos impedem de fazer o que nos der na real-gana.

As leis servem, supostamente, para sistematizar estas regras, e fazê-lo de uma forma clara, justa e, acima de tudo, equitativa. Não agradam nem agradarão nunca a toda a gente, nunca são nem serão perfeitas, mas delas se espera que salvaguardem o interesse geral da comunidade, ainda que pontualmente possa haver um prejuízo individual. É por isso que devem ser respeitadas e aplicadas, e é para garantia dessa salvaguarda que pagamos, com os nossos impostos, uma Administração Pública.

Mas isto é teoria. A prática revela-se, muitas vezes, algo bem diferente. Centrando esta reflexão em Portugal, e deixando de fora países civilizados, verificamos que por cá se legisla muito e muito mal. A maior prova da fraca qualidade das nossas leis é, desde logo, a sua quantidade.

O princípio geral de organização das leis (e aqui sim, socorrendo-me de exemplos de países civilizados) assenta, grosso modo, numa hierarquia subsidiária, que parte dos princípios gerais, que normalmente são a Constituição, seguindo-se as Leis de Bases temáticas, e posteriormente a regulamentação concreta de matérias que, pela sua complexidade e especificidade, requerem uma abordagem dedicada.

Ou seja, se as leis, nos diferentes níveis, contiverem uma boa sistematização dos princípios e regras, isso é suficiente para depois a Administração, com base em opções técnicas e políticas, gerir as realidades que se vão apresentando. Legislar sobre tudo e mais alguma coisa, pormenorizando até à exaustão, não só é um exercício incompleto (é impossível cobrir todas as pequenas variantes), como é próprio de quem não sabe ou não é capaz de gerir, na verdadeira acepção da palavra.

No entanto, e apesar de todos os erros que os diplomas possam ter (e têm, sem qualquer dúvida, alguns deles intencionais…), é dentro de um quadro de respeito pelas leis que as podemos e devemos pôr em causa, de forma a promover o seu constante melhoramento e aproximação à realidade.

Coisa bem diferente é aquela a que assistimos nos dias que correm, em que, sob a propaganda de um maior impulso à economia, se isentam diversos sectores de actividade de cumprirem legislação ambiental, chegando-se mesmo a branquear a violação das mesmas. Dá vontade de rir que seja a ecologia o entrave à economia e ao desenvolvimento, num País que afoga a iniciativa em impostos e burocracias, e ainda polvilha com um clima generalizado de chico-espertismo e impune tráfico de influências…

Mas enfim, como as regras é que dão cabo de tudo, principalmente as ambientais, o Governo quer recuar três décadas, e desfazer por completo o sonho de País minimamente civilizado, materializado no impulso da legislação que ocorreu nos anos 80 do século passado, quando foram definidas as linhas gerais das políticas de ambiente, em diferentes áreas, estabelecendo os princípios basilares do quadro normativo, de respeito pelos princípios da sustentabilidade e perenidade.

Vai daí, prepara uma amnistia no sector das indústrias extractivas, no âmbito da qual pretende “legalizar” (leia-se licenciar ilegalidades) as explorações em conflito com instrumentos de ordenamento territorial. Ou seja, verga a lei aos que a não respeitam, invertendo a lógica de um Estado de Direito, bem como aquilo a que comummente se chama decência.

O princípio é simples: com esta operação de branqueamento, a Administração fecha os olhos, e faz de conta que não viu nada. Não viu suiniculturas a debitar cargas orgânicas brutais para as nossas redes hidrográficas, onde depois gastamos milhões a tratar água, para poder consumir.

Não viu também pedreiras, areeiros e que tais, que deixam cicatrizes na nossa paisagem e comprometem todos os restantes aproveitamentos potenciais (agrícola, turístico, etc.), sendo que quem as explorou levou o lucro, deixando atrás o encargo de recuperar estas áreas – assim é fácil ser empresário. Ou seja, não viu o que toda a gente vê e inclusivamente denuncia. Há por aí um chamado heliporto, numa ilha, que tem semelhantes dotes de invisibilidade e de sobrevoo das leis…

Mas a anedota no meio disto tudo, é esta proposta se basear numa lógica de “última oportunidade”, permitindo limpar a ficha, mas a seguir obrigando a cumprir. Este conto infantil seria bonito, não fosse o caso de já o termos visto há 20 anos (pouco tempo, seguramente), quando o mesmo argumento foi utilizado para a mesma situação.

O resultado? Aqui o temos.

Estas indústrias são importantes, sem dúvida alguma. Mas devem exercer a sua actividade respeitando regras (que poderão seguramente ser melhoradas), sob pena de comprometer a legítima aspiração de outros, no futuro, fazerem o mesmo. De outra forma, é uma política de terra queimada.

O bónus para o incumprimento das leis tem justamente o condão de colocar um selo de imbecilidade na testa daqueles que investiram em localizações adequadas e equipamentos que permitissem um adequado desempenho ambiental das suas actividades. O prémio que têm é verem hoje os inconscientes ou chicos-espertos, que fizeram o que lhes apeteceu, como apeteceu, levarem uma palmadinha nas costas.

É como aquela pedagogia de pacotilha, em que as criancinhas podem destruir tudo o que quiserem, as vezes que quiserem, desde que no fim reconheçam que se portaram mal. Depois podem repetir o processo, desde que sempre concluído com o placebo paternal do reconhecimento de culpa e vã promessa de não repetição.

Nesse caso originam-se sociopatas. Neste, um País completamente a saque, onde a mensagem que se passa é a de que ninguém tem que respeitar nada nem ninguém. Facilitismo terceiro-mundista no seu melhor.

Quem vier atrás, que feche a porta.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

 

 

 

 

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