Lídia Jorge, as memórias e os mitos sobre os heróis do 25 de Abril

Era para ter sido uma conversa sobre o mais recente livro de Lídia Jorge, mas acabou por ser sobretudo uma […]

Era para ter sido uma conversa sobre o mais recente livro de Lídia Jorge, mas acabou por ser sobretudo uma conversa sobre o 25 de Abril de 1974 e as memórias – e mitos – que guardamos desse «dia fundador».

No palco negro da sala principal do Teatro Municipal de Portimão (Tempo), tendo por pano de fundo uma foto icónica do 25A, a do mar de gente no Largo do Carmo, dispuseram-se 80 cadeiras voltadas para o sítio onde se sentaram a escritora Lídia Jorge, o diretor do teatro João Ventura e a presidente da Câmara Isilda Gomes. No chão, 10 cravos vermelhos. Quando se entrava, o ruído de fundo, que quase se sobrepunha às conversas, era o dos passos na gravilha que inicia a «Grândola», de Zeca Afonso.

E seria com essa música, também ela icónica, que começaria a sessão. Grande parte das pessoas, e até Lídia Jorge, cantaram-na, mais ou menos em surdina, uns de olhos em baixo e semblante fechado, outros com um sorriso na cara. Um velho militante comunista, sentado na primeira fila, olhou para a pessoa do lado e disse-lhe: «quem havia de dizer que ainda iam cantar a Grândola assim…».

Estava dado o mote para a conversa, que haveria de juntar quase 80 pessoas durante mais de hora e meia, ao princípio da noite de sexta-feira, dia 28.

Isilda Gomes, presidente da Câmara de Portimão, começou por dizer que o cenário e a música lhe relembraram «a minha juventude, a nossa esperança no futuro, no sermos capazes de construir uma sociedade diferente da que estamos a viver. Quatro décadas passaram e ainda estamos neste limiar de pobreza…»

E a autarca remataria: «a apresentação deste livro de Lídia Jorge é a melhor maneira de começarmos a comemorar os 40 anos do 25 de Abril em Portimão».

Lídia Jorge

Foi então a vez de Susana Martinho Lopes, da equipa do Tempo, ler um primeiro trecho do romance «Os Memoráveis», afinal a razão de ser daquela tertúlia. Um livro que conjura uma certa memória do 25A, já não a da verdade histórica e factual, mas a daquilo que cinco homens-chave da revolução recordam. Pelas páginas de «Os Memoráveis» passam, por exemplo, Otelo, Vasco Lourenço, a viúva de Salgueiro Maia, a quem um grupo de jornalistas jovens vai entrevistar para recolher o seu testemunho, quase 40 anos depois.

João Ventura, diretor do Tempo, leitor ávido, fez a primeira pergunta a Lídia Jorge: «escreveu o livro por um imperativo ético?»

Lídia Jorge explicaria que não se trata de um livro saudosista de uma certa inocência e pureza perdida. «Memoráveis parece ser uma memória do passado, epíteto que significa que vamos desenterrar o passado, mas é antes um passado revisto porque projetado no futuro. Memorável é o futuro, aquilo que no futuro é digno da nossa memória, que vai do presente para o futuro».

O tema do seu romance, acrescentou a escritora, «nasce do próprio tempo», e, nesse sentido, «não é um livro político, não é um livro panfletário». «Não é para dizer que os militares nos salvaram, não é para dizer que precisamos de outra revolução, não é para demonstrar, muito menos para mostrar, para mostrar como se deu, como a esperança se perdeu nalguns pontos e se manteve noutros».

Ética? «Não é para abrir a porta e dizer: faz-se assim! Eu não sei como se faz! É para dizer: olhem como foi feito. Juntar uma mudança ao futuro e, nesse sentido, é profundamente ético».

É que, acrescentou Lídia Jorge, «se for só um livro político é pouco! Pretendi um livro literário, onde o ético é apenas uma das costelas do esqueleto».

João Ventura voltaria à carga: «é para isto que serve a literatura? Serve para acordar a história e pôr fim à obsessão moderna do esquecimento?»

«Quando comecei a escrever, fui empurrada pela tristeza: nós que sonhámos ser um país com voz no mundo estamos com a corda na garganta». Queria «fazer a sociedade acordar e ser outra vez adolescente, sem medo de nada», sublinhou a autora.

 

Porque é que os jovens não encontram uma nova canção?

E aqui surgiu uma reflexão sobre a “utilização” atual da canção «Grândola», como símbolo do protesto das gerações atuais. «Há um ano e tal as pessoas começaram a cantar a Grândola como protesto». Porque «os jovens não estavam a ser capazes de encontrar uma nova canção, voltaram a esta», disse Lídia Jorge.

Em jeito de resposta, primeiro surgiu o testemunho de Damião Sequeira, professor reformado, que em 1974 estava na Alemanha. Recordou a importância da «Grândola» como símbolo da Revolução do 25A, mesmo no exterior, e a vez que José Afonso se recusou a cantá-la numa sessão na Alemanha, por não a querer «banalizar».

Depois foi a intervenção serena, mas forte, de Pedro Pinto, de 27 anos, o único jovem presente naquela conversa. «Onde é que está a minha geração? Porque é que, quando participo em coisas deste género, sou sempre o mais jovem?», interrogou. Porque, respondeu, «para a minha geração a liberdade é uma coisa adquirida». Mas «o que faz a minha geração com essa liberdade? Desperdiça-a e anda distraída». No entanto, a liberdade, disse ainda o jovem Pedro Pinto, serviu «para que hoje pudesse estar aqui com este microfone a dizer o que penso».

Lídia Jorge ficou emocionada com as palavras deste jovem e respondeu-lhe: «no livro há uma passagem em que Salgueiro Maia – pela boca da sua viúva – diz: que feliz seria o dia em que os jovens já não precisassem de recordar o 25 de Abril!».

«A memória é um funil. Não podemos passar para os mais jovens todas as nossas memórias, apenas uma parte delas». Mas o 25A foi «um dia fundador e esse dia fundou a liberdade deste jovem».

A memória, insistiu Lídia Jorge, é «um funil». «Temos a nossa memória, mas vamos começar a afunilar, a afunilar», até chegar a uma versão da história que, mais do que síntese, já é pura construção. «Mesmo as pessoas da minha idade estão a apagar muitos dos nomes que fizeram o 25 de Abril, já só se recordam dos nomes mais sonantes».

Por isso, disse a escritora, «este livro não é histórico, apenas bebe da história. Este livro pretende ir ao encontro de uma mitologia», a mitologia que anos de memória criaram sobre o 25A. As personagens d’«Os Memoráveis» são, concluiu Lídia Jorge, «figuras que aparecem não na sua verdade histórica, mas na sua verdade mitológica».

Talvez seja, como disse Camões, que também escreveu sobre outros mitos portugueses, um livro sobre «aqueles que por obras valerosas/se vão da lei da morte libertando».

 

Veja mais fotos aqui.

 

 

 

 

Comentários

pub