Crendices no Telejornal da RTP

Vivemos numa sociedade científica e tecnológica. Por isso, o conhecimento científico deve estar acessível a todos para garantir uma melhor […]

Vivemos numa sociedade científica e tecnológica. Por isso, o conhecimento científico deve estar acessível a todos para garantir uma melhor cidadania em democracia. De facto, o convívio com o pensamento científico desenvolve uma atitude crítica, uma opinião própria mais esclarecida e fundada na verdade dos factos.

A ciência permite aceder a um melhor conhecimento do mundo em que vivemos, permite erradicar as superstições, os obscurantismos e as crendices. Estas últimas sempre foram usadas por charlatões para enganar falaciosamente os outros, num aproveitamento vigarista da ignorância.

Os meios de comunicação social são veículos muito importantes para a comunicação do conhecimento científico. São uma ponte fundamental entre os cientistas e o público em geral. Contudo, verifica-se que o espaço por eles dedicado a assuntos científicos e tecnológicos é muito insuficiente, tendo em conta o papel que a ciência e a tecnologia ocupam no nosso dia-a-dia.

Um caso melhor estudado é o da televisão. Segundo o relatório “Ciência no Ecrã”, realizado pela Entidade Reguladora da Comunicação Social e pelo Instituto Gulbenkian da Ciência, apenas 0,8% do tempo dos telejornais em horário nobre é dedicado à ciência, sendo que a duração média das peças de ciência no telejornal da RTP, por exemplo, é de cerca de três minutos.

Recorde-se que a televisão pública é financiada por todos os consumidores de eletricidade em Portugal (através da contribuição audiovisual), incluindo os cegos e os surdos, além das transferências do Orçamento de Estado, pelo que devemos ter, no mínimo, uma atitude de exigência de qualidade e seriedade no serviço público prestado.

Acontece que a televisão pública decidiu recentemente incluir no Telejornal das oito, não uma rubrica de ciência, mas um espaço relativamente destacado para divulgar crendices e pseudociências (ou seja, atividades que, apesar de aludirem a uma pretensa base científica, de ciência não têm nada).

Em cinco rubricas emitidas a televisão pública gastou 41 minutos e 39 segundos do Telejornal a fazer publicidade enganosa a produtos e serviços milagrosos. Deu tempo de antena a: um especialista em “medicina popular”, que afirma fazer diagnósticos médicos medindo, aos palmos, a roupa dos pacientes; a um “endireita” que diz ter um “dom” que “herdou do pai”, que trata “males dos ossos e dos nervos de uma forma que não tem explicação”, mas que terá demonstrado, com um galo, a validade do seu tratamento em tribunal; a uma cartomante que diz acertar em 90% das vezes; a uma fitoterapeuta que afirma fazer diagnósticos de doenças graves através da leitura da íris, e que diz tratar o cancro de uma paciente com uma raiz que “tem a forma do corpo humano” e conclui dizendo que “a quântica pode determinar a data da morte do ser humano”; a um médium que afirma “incorporar” os espíritos “de quem partiu, geralmente santos” para curar diversos males.

Estas rubricas, que a RTP apresenta com o título enganoso “acreditar” (nada do que é apresentado é credível!), são autênticas publicidades enganosas a atividades nada verosímeis, além de serem apresentadas sem direito ao contraditório.

Num serviço de natureza jornalística, a televisão pública dá tempo de antena a um conjunto de aldrabices. Isto não é serviço público. Serviço público seria contribuir para desmistificar aquelas crenças.

Como comunicador de ciência, o mínimo que se me impõe é avisar o leitor para esta situação escandalosa. Não se deixe enganar e exija seriedade e profissionalismo jornalístico na televisão pública.

 

Autor: António Piedade

 

 

 

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