Um jardim à beira-mar escavacado

Quando em 1862 Thomaz Ribeiro se referiu a Portugal, no poema homónimo, como “jardim da Europa à beira-mar plantado”, dificilmente […]

Quando em 1862 Thomaz Ribeiro se referiu a Portugal, no poema homónimo, como “jardim da Europa à beira-mar plantado”, dificilmente terá sonhado que tal expressão viesse a ganhar um papel tão destacado nos slogans do feudo.

De tal forma que, mais de 150 anos volvidos, e mesmo estando o jardim num estado ruinoso, continua a ser das alegorias mais utilizadas para ilustração do nosso Portugal.

No entanto, caro Thomaz, tenho más notícias para lhe dar.

A “lisa estrada” está hoje esburacada, e não há dinheiro ou gente para a reparar, enquanto vê passar paralela uma auto-estrada deserta (mas em nome da qual nos assaltam os bolsos). O seu “laranjal em flor sempre odorante” e os seus pomares “d’um rico Outono” foram condenados pela PAC, e os agricultores, reminiscências de um passado odiado, foram subsidiados até à extinção, e no dia em que acabar o fiado, não temos o que comer. O cenário de “fontes e de arroios serpeado, rasgado por torrentes alterosas” está represado e afogado por um megalómano plano de barragens, ou com edificações nos seus leitos de cheia. Quanto às aves que “gorgeiam noite e dia”, essas, melhor ou pior, vão-se safando.

Mas há pior, caro Thomaz, muito pior.

O jardim, mais do que à beira-mar, está a cair aos bocados, dentro do oceano. Abusámos da ocupação do litoral, colocámo-nos em risco ao imobilizar zonas naturalmente dinâmicas, alterámos correntes marítimas com esporões e afins para proteger delírios de pato-bravo, interrompemos a corrente de sedimentos que alimentava a costa (as tais barragens a granel, Thomaz), baralhámos por completo a ordem das coisas.

Mas fugimos para a frente, e limitamo-nos a culpar o mar, esse malandro que, desde há pelo menos uns milhares de milhões de anos, se limita a fazer o que sempre fez, atiçado porventura apenas pelas consequências das nossas tropelias enquanto espécie humana, na forma de alterações climáticas. E continuamos a atirar dinheiro ao mar, sob a forma de toneladas de areia, atacando os sintomas, e nunca a causa.

E agora, pasme-se, Thomaz.

Apesar do jardim ser pequeno, temos mais casas vazias (735.000, de acordo com um estudo recentemente publicado pelo “The Guardian”) do que o Reino Unido (700.000), um jardim duas vezes e meia maior. A Alemanha, apesar de ser 4 vezes maior, à laia de parque urbano, tem apenas pouco mais do dobro de casas vazias. De resto, chegou-se à abismal conclusão de que existe qualquer coisa como 12 milhões de casas vazias só em 8 países europeus (Portugal, Espanha, França, Itália, Grécia, Irlanda, Reino Unido e Alemanha), quando se estima que haja cerca de 4 milhões de pessoas sem-abrigo na União Europeia.

Dá que pensar, não é, Thomaz?

E se lhe disser que, para além deste cenário, Portugal tem perímetros urbanos, de expansão edificada programada, suficientes para albergar 30 milhões de habitantes, quando somos apenas 10 milhões, e numa tendência demográfica cada vez mais estagnada e regressiva? E se, para além disso, lhe disser que nas revisões em curso de Planos Directores Municipais se continua a querer aumentar esses perímetros, e persistir na construção (arredando toda a legislação que a possa, justificadamente, condicionar), enquanto se coloca todo o restante território num desamparado vazio? Pensamento prospectivo? Talvez.

Ou então cupidez atávica, que continua a ver no dinheiro fácil da betoneira a salvação. Ou perseverante incompetência governativa, associada a um clientelismo instituído por dinastias partidárias (a monarquia apenas mudou de nome), onde os imberbes delfins, ineptos de pai e mãe, se limitam a gerir a Cosa Nostra, em vez da coisa pública. Ou estupidez crónica. Pode até ser desnorte inveterado.

Contas feitas, somos um mastodôntico Ícaro, temerariamente rumo ao Sol…

Mas olhe, Thomaz, as coisas são como são, e não vale a pena contestar ou questionar. É que, apesar deste milagroso Portugal não parar de melhorar, em progresso galopante, a nossa vida não pára de piorar.

Resta-nos pedir desculpa às luminárias pensantes por teimarmos nesta ignorante tentação de olhar a realidade, e continuar a apreciar e agradecer, em inconsciente deleite, o postal deste jardim à beira-mar escavacado.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

 

 

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