Quando o lobo é dono da floresta

A propósito da recente publicação do novo regime jurídico aplicável às acções de arborização e rearborização, sinto-me tentado a voltar […]

A propósito da recente publicação do novo regime jurídico aplicável às acções de arborização e rearborização, sinto-me tentado a voltar a falar de contos populares/infantis, e novamente com recurso ao Lobo, ficando, também novamente, arredado o epíteto de mau, o que explicarei mais adiante.

Mas, se antes me debrucei sobre a propensão do Lobo para o consumo de suínos, ainda que dotados de conhecimentos na área da Engenharia, agora centro-me na sua veia mais florestal, e na fixação deste lupino com jovens raparigas trajando de vermelho.

Por mau-feitio, fetiche ou simplesmente numa forma extremamente desastrada e abrutalhada de tentar conhecer raparigas, o Lobo tende a perseguir o Capuchinho Vermelho, bem como outras pessoas próximas da moçoila.

E tudo isto se passa na proverbial floresta. É mais ou menos sabido o desenrolar dos acontecimentos, e como tudo descamba num penoso fim para o Lobo. Qual o papel da floresta nesta trama? Cenário, simples cenário.

Mas imagine-se que a floresta é entregue à vontade do Lobo. E que o Lobo a pode desenhar e manipular a seu bel-prazer, criando um elaborado labirinto cujo único fim é a captura do Capuchinho Vermelho, seguida de sabe-se lá que outras manigâncias. Não seria uma luta muito justa, pois não? E é fácil de saber quem, nesse contexto, se vai dar mal…

E o que tem o diploma legal citado que ver com tudo isto?

Mantenha-se a floresta como pano de fundo, troque-se o Lobo pelas espécies florestais de rápido crescimento (das quais o eucalipto é o filho pródigo) e troque-se o Capuchinho Vermelho pelo interesse público, e tem tudo.

Isto porque, tendo em conta a nossa realidade cadastral, o Decreto-Lei nº 96/2013 veio dar carta-branca à arborização e rearborização com qualquer espécie florestal, independentemente das suas características ou da sua localização, salvo dentro das Áreas Protegidas, onde existe ainda algum controlo, mas também aí de eficácia duvidosa, considerando o histórico.

A letra da lei assume portanto a errada e disparatada premissa de que as espécies florestais são todas iguais. Não só não o são, como as diferenças chegam a ser dramáticas. Quer em termos de produtividade, de conservação ou de potencial de geração de modelos económico-sociais mais orientados para a perenidade e equidade, as espécies autóctones são muito mais vantajosas a longo prazo, por oposição às espécies de rápido crescimento.

E é nesse horizonte que um País deve ser pensado.

Não apenas isso, mas importa lembrar que a expansão desregrada das espécies de rápido crescimento em Portugal, na busca do imediato, sem respeitar as estruturas fundamentais da paisagem ou as suas características edafo-climáticas, contribuiu, de forma significativa, para parte dos problemas de desorganização do território nacional ao nível florestal, sendo os incêndios (devido às características do material combustível e ao modelo de exploração associado, sem descontinuidades) a sua face mais visível e, porventura dramática.

Quero com isto dizer que estas espécies são as responsáveis pelos incêndios em Portugal? Nem de perto nem de longe. Esse mal é mais profundo, e decorre do abandono das nossas paisagens rurais, de um cadastro pulverizado e da falta de cultura e gestão territorial, entre outros factores. Mas o seu contributo para o problema é inegável.

Note-se que ter em Portugal uma fileira da celulose é óptimo. Contribui para a diversificação das actividades económicas e das empresas associadas, gerando, inegavelmente, riqueza. O que não pode acontecer é que se torne o alfa e o ómega da floresta portuguesa, numa monocultura que abafa tudo o resto. Tem, portanto, que estar integrado num mosaico funcional.

Até porque, para quebrar o ciclo de abandono do mundo rural em curso, é necessário um modelo de proximidade e envolvimento, em que se viva na terra e da terra, e não um em que donos de terrenos onde se podem plantar árvores, de forma remota, os arrendam ou vendem à melhor oferta, que por norma vem do poderoso lobby da celulose.

É necessário que os interesses privados, de proprietários e agentes económicos, sejam enquadrados numa necessária ideia de futuro para a floresta portuguesa.

Pode dizer-se que entregar o País à celulose é uma ideia tão boa como qualquer outra. Pois pode. Mas é para isso que temos a cabecinha em cima dos ombros…

É certo que o sector florestal, dada a sua complexidade e antiguidade em Portugal, tem um quadro legislativo complexo, muitas vezes indecifrável, redundante e até contraditório. Mas daí até à simplificação ao limite da imputabilidade, vai uma distância insustentável.

O que é necessário é uma gestão integrada flexível, adaptável (e adaptada), rigorosa e, acima de tudo, eficaz – porque não recuperar e melhorar o Código Florestal? Ora bem, reflexo ou não da capacidade dos nossos gestores e decisores, em Portugal, quando um sector ganha contornos de complexidade, a melhor solução que nos conseguem apresentar é… o desmando!

Paralelamente, não deixa de ser (tristemente) curioso que, quando uma actividade é assumida como estratégica – como têm vindo a ser reconhecidas as actividades ligadas ao sector primário – o respectivo quadro legislativo evolua para uma bandalheira, estilo western (mas sem sheriff), onde tudo é permitido, desde que através da adequada “interpretação” ou de fracas figuras de gestão e ordenamento, como é o caso.

Confunde-se, de forma tudo menos inocente, simplificação com facilitismo.

Oscilamos sempre entre dois extremos. Num deles, temos a burocracia extrema, incoerente e inconsequente, que, cobrando pelo caminho emolumentos e taxas diversas, apenas serve para perpetuar os pequenos poderes e asfixiar toda e qualquer iniciativa, matando-a à nascença. No outro extremo, a incúria absoluta, em cujo contexto o delicado pé de alguns interesses privados, já que estamos numa de contos, sempre serve no regulamentar sapatinho de cristal, quase como se tivesse sido desenhado à medida.

O Lobo não é, portanto, intrinsecamente mau. Tem potencial para a maldade, se não for devidamente enquadrado. Tudo depende então do maior ou menor controlo que se exerça sobre a evolução desse potencial.

Logo, a questão é se confiamos assim tanto no Lobo, para deixar a floresta na sua mão…

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

 

 

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