Apoio às artes e a poética nos formulários

Quem nos últimos tempos se dedicou a fazer uma candidatura a apoio da Dgartes saberá certamente do que trata este […]

Quem nos últimos tempos se dedicou a fazer uma candidatura a apoio da Dgartes saberá certamente do que trata este artigo.

Fazer uma candidatura a apoios nos dias que correm é uma tarefa hercúlea, e a dedicação e persistência de quem a faz merece o reconhecimento de qualquer comum dos mortais. Não apenas pelo esforço e pelas horas dedicadas a tentar compreender a linguagem administrativa imoral que ali se apresenta, mas também porque, depois desse processo, qualquer pessoa estará apta a concluir que a tecnocracia instalada só pode ser poética.

Portugal é um país pequeno onde os artistas são muitas vezes obrigados a mendigar migalhas para conseguirem sobreviver. O sistema que foi montado é, de raiz, uma estrutura deficiente que obriga os artistas a criarem dentro de si inúmeros heterónimos. Cada pedaço de tempo é gasto a franzir o olho, tentando perceber as novidades fresquinhas que os concursos encerram, para que, no final, cheguemos à conclusão de que tudo permanece na mesma, exceto o orçamento para a cultura que mingua a cada dia.

Engane-se quem pensa que não é importante para a DGARTES avaliar os bons resultados das estruturas que apoia, e saber o impacto que têm na sociedade. Nesse sentido, a novidade deste ano diz-nos que alguém aprendeu no estrangeiro que fica bonito inventar folhas com indicadores, e saber afinal se uma estrutura está a ser devidamente seguida no Facebook.

O conteúdo do formulário eletrónico que este ano nos foi apresentado é uma pura elegia poética que transfigura qualquer pessoa ou grupo de pessoas, e nos obriga a ter mais atenção no nosso futuro, seguindo ordeiramente o rumo tão profético, que só o nosso primeiro ministro e os seus súbditos conseguem decifrar.

Senão, veja-se que no Facebook se sabe de tudo. Foi lá que consegui acompanhar o alcance desta iniciativa e perceber que o governo conseguiu pôr em prática um plano de eficiência. Reunidos em diversos espaços por este país fora, muitos artistas vestiram a pele do seu heterónimo burocrático, e acompanhados por chá e biscoitos, conectados nas redes sociais, seguiram noite adentro, tentado decifrar a poética do que lhes era pedido, e adaptando cada projeto a um jargão que só vai ser lido pela equipa da DGARTES.

Também essa é uma novidade. Este ano não há juri externo, e como tal os formulários recolhem a proposta e uma espécie de auto-avaliação disfarçada, obrigando os proponentes a autênticos exercícios de escrita, profundamente alicerçados nos valores que são alheios às missões artísticas, e que nos propõem apresentar e caracterizar um “projeto em função das suas características distintivas e do contexto no qual se insere”, e ao mesmo tempo evidenciar “os fatores de diferenciação e especificidade do projeto, salientando nomeadamente a sua singularidade estética, e da equipa interveniente”.

Quem nunca viu, que o faça. O formulário de candidatura é um universo, um rio que nos leva à foz, desaguando num espaço que produz uma substância capaz de fertilizar o território.

São caixas de textos que tentam incutir nos participantes a disciplina de síntese e testar os seus conhecimentos na área de informática, sugerindo que não há vida para além do Bill Gates. O manual do candidato não deixa margens para dúvidas “O formulário foi criado e otimizado para Excel 2003. A utilização de outro programa de folha de cálculo poderá restringir algumas das funcionalidades previstas”, e quem usa open source poderá ter que se aguentar à bronca.

Depois de preenchidos todos os campos, e cumpridas todas as normas, o formulário fica finalmente pronto a enviar. Carregar no botão torna-se assim num exercício de libertação e alívio inigualável, quase orgásmico, deixando uma única certeza. Os diversos formulários, e os valores que estão na sua origem representam uma subversão dos princípios básicos de uma sociedade sã e dialogante, e uma ingerência na criação artística contemporânea.

O governo não tem compromisso com as artes e as estruturas que o representam não saem dos gabinetes onde exploram a fenomenologia das folhas de cálculo e a poética da relação entre caracteres, sem ferir os olhos num único som ou imagem. São traços de um tempo onde como sucede em outras áreas, o absurdo tomou conta da base piramidal da nossa sociedade.

 

Autor: Jorge Rocha é Artista e Produtor independente

 

 

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