Mesmo sem dinheiro já se trabalha no Museu da Escravatura de Lagos

Já há instalações, um anteprojeto de arquitetura, ideias para o projeto museológico, e muita, muita vontade…mas falta o principal: o […]

Já há instalações, um anteprojeto de arquitetura, ideias para o projeto museológico, e muita, muita vontade…mas falta o principal: o dinheiro. O protocolo para a criação do Museu da Escravatura em Lagos foi ontem assinado pela Câmara desta cidade algarvia, com o Centro de Estudos sobre África e do Desenvolvimento (CEsA) e o Comité Português do Projeto UNESCO “A Rota do Escravo”.

A localização para este futuro Museu, que será o segundo da Europa dedicado ao tema, depois do de Liverpool (Inglaterra), já está escolhida: um dos núcleos funcionará no antigo Mercado dos Escravos, na zona ribeirinha de Lagos, e o outro num edifício a construir no Parque do Anel Verde, no local onde, em 2009, durante as intervenções arqueológicas preliminares para a construção de um parque de estacionamento, foi descoberto aquele que viria a revelar-se como o mais antigo “cemitério” de escravos do mundo e o único até agora descoberto na Europa.

Tal como para o Mercado dos Escravos (um edifício de origem quinhentista que apenas sofrerá pequenas adaptações interiores às novas funções de museu), o anteprojeto de arquitetura para o segundo núcleo, para já denominado «Memorial da Escravatura», foi também apresentado esta quarta-feira, na mesma cerimónia na Câmara de Lagos que serviu para a assinatura do protocolo.

O arquiteto Pedro Ravara é o autor dos anteprojetos para ambos os núcleos do futuro Museu da Escravatura e a sua apresentação deixou espantado até o presidente da Câmara de Lagos: «para mim, a apresentação destes projetos foi uma surpresa, porque não sabia que já estavam tão adiantados», confessou ao autarca, no final, ao Sul Informação.

Protocolo com o Centro de Estudos sobre África e do Desenvolvimento, do ISEG

Para o núcleo do Memorial, a ser erguido no local onde os arqueólogos encontraram cerca de centena e meia de esqueletos humanos que depois se veio a determinar serem de escravos africanos, não enterrados num verdadeiro cemitério, mas jogados numa lixeira, à mistura com animais, o arquiteto Pedro Belo Ravara esboçou um edifício que se desenvolve em dois corpos paralelos, um da escuridão, do que ficou escondido e enterrado, na terra e na memória, e outro da claridade: «um espaço negro, da história deste lugar, e outro branco, do trazer à luz da contemporaneidade a investigação que foi feita».

Dália Paulo, diretora regional de Cultura, presente na cerimónia, salientou o valor do projeto do Museu da Escravatura, recordando que ele «nasce da investigação arqueológica, criando um projeto que faz sentido em Lagos e não noutro local». «É importante que possamos assentar tudo o que fazemos na nossa memória e na nossa identidade», sublinhou ainda.

Por trás de todo este projeto do Museu da Escravatura – que irá recordar o facto de Lagos ter sido, no século XV, o primeiro grande entreposto do comércio de escravos africanos na Europa – está o interesse antigo da Câmara de Lagos pelo tema – o presidente Júlio Barroso sublinhou a «importância deste projeto na nossa estratégia» e na afirmação da «marca Lagos dos Descobrimentos» -, mas sobretudo o grande entusiasmo de Isabel Castro Henriques, presidente do Comité Português do Projeto UNESCO “A Rota do Escravo”.

«A Câmara de Lagos tem ido a reboque destes entusiasmos, primeiro do professor Rui Loureiro [membro da antiga Comissão Municipal dos Descobrimentos] e depois da professora Isabel Castro Henriques», recordou o autarca.

«Mas quando ela me contactou pela primeira vez, pus logo tudo em pratos limpos e disse-lhe: os tempos são de enorme contenção e a Câmara não tem dinheiro para fazer o Museu. Ao que ela me respondeu: não há problema, porque a gente há de encontrar o dinheiro para fazer isto».

Mas de onde virá então o dinheiro? Júlio Barroso, em declarações ao Sul Informação, reforçou que «a Câmara não está em condições de lançar este projeto, a não ser através de uma eventual verba da derrama ou de alguma candidatura que possamos fazer para este tipo específico de intervenção. Mas isso são hipóteses remotas». Por isso, confessou o edil, «estamos pendurados na UNESCO».

Isabel Castro Henriques, presidente do Comité Português do Projeto UNESCO “A Rota do Escravo”, da qual o futuro Museu será uma peça fundamental, não esconde o seu otimismo: «já estamos à procura de mecenas e de parceiros», para ajudarem a construir os núcleos do Museu da Escravatura em Lagos.

E que mecenas são esses? «Bancos, construtoras, seguradoras, petrolíferas, empresas que percebam que se trata de um projeto exemplar, único e com a chancela da UNESCO», responde. Mas trata-se de empresas portuguesas? Também, mas não só. «Vamos procurar parcerias internacionais, não só com empresas, como com organismos». «Tenho já feito algumas démarches nesse sentido», nomeadamente com o Ministério da Cultura de Angola e com o Brasil, revelou ainda Isabel Castro Henriques.

Para já, para este Museu com vários núcleos – na realidade são três, porque, além do Mercado dos Escravos e do Memorial da Escravatura, haverá ainda um terceiro, um Centro de Estudos, a instalar na Casa da janela Manuelina, onde já funciona o Centro UNESCO de Lagos – não há ainda orçamento, nem prazo.

Mas já vai havendo a congregação de muitas boas vontades. Isabel Castro Henriques sublinha as especificidades de Lagos que tornam este Museu único a nível mundial. E revela as colaborações que o projeto já recebeu: em primeiro lugar, do arquiteto Pedro Belo Ravara, que está a fazer o projeto pro bono; depois de vários artistas plásticos de países de língua portuguesa, que doaram esculturas para integrar o percurso do Parque do Anel Verde, desde a porta da Gafaria ao Memorial da Escravatura: Chichorro (Moçambique), Lívio de Morais (Moçambique), Eduardo Malé Fernandes (São Tomé). Para já são estes, mas Isabel Castro Henriques espera atrair outros artistas plásticos para o projeto, nomeadamente de Portugal, Angola, Cabo Verde e Brasil.

Enquanto o dinheiro para concretizar a obra física não surge, o trabalho não pára. O protocolo ontem assinado teve precisamente a ver com a criação da equipa de trabalho que irá agora criar o programa museológico e os conteúdos expositivos do futuro Museu da Escravatura. Mesmo sem dinheiro, há muito a fazer.

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