Memórias do acidente do “rápido do Algarve”, 58 anos depois

Serão muito poucos os habitantes de Sabóia, Pereiras e Santa Clara-a-Velha que nunca ouviram falar do desastre do rápido do […]

Serão muito poucos os habitantes de Sabóia, Pereiras e Santa Clara-a-Velha que nunca ouviram falar do desastre do rápido do Algarve, mas menos ainda os que viveram aqueles dias trágicos e se mantêm entre nós. O acidente aconteceu a 13 de Setembro de 1954, fazem hoje precisamente 58 anos.

Em Santa Clara-a-Velha, depressa foi possível verificar que encontrar testemunhas vivas desse grave acidente iria ser tarefa árdua. Na Junta de Freguesia, uma jovem funcionária destacou o Livro de Enterramentos, como a única memória de tão sinistro acontecimento naquela autarquia.

Ao todo, encontram-se registados 27 mortos resultantes do “descarrilamento do rápido”, e apesar dos “N.º de Ordem” serem sequenciais, foram cortadas ao livro três folhas, ou seja da folha 29 passa-se para a 33. Além disso, algumas das pessoas supostamente sepultadas naquele cemitério foram na verdade logo transladadas para as suas terras de origem, o que leva a pôr em causa a credibilidade daqueles registos.

Cá fora, no largo fronteiro, a D. Edviges recorda o acontecimento, mas sem grandes pormenores, por não se encontrar na aldeia na época, tendo tido conhecimento pelo jornal.

Mais além, a D. Inácia Cruz também se lembra do desastre, mas também ela estava fora, na Zambujeira, o mesmo sucedendo com o Sr. António Rita.

À questão “Existe ainda alguém em Santa Clara que tenha presenciado tal catástrofe?” – a resposta quase em uníssono – “Dificilmente! As pessoas que se recordavam têm falecido, só havia uma senhora que sabia, mas ela está hospitalizada”. Afinal passaram-se 58 anos sobre o acidente…

Mas a D. Inácia acaba por recordar-se que talvez o Sr. Alberto soubesse alguma coisa, afinal já era rapaz nesse tempo. Partimos ao seu encontro. Não seria fácil, mas valeu a sua esposa, a D. Zulmira, que se prontificou a acompanhar-nos até ao seu encontro.

 

Cemitério de Santa Clara, onde foram sepultadas algumas vítimas do desastre do rápido

O testemunho de Alberto Pedras, que ajudou a carregar os mortos

Parco em palavras, o Sr. Alberto Pedras recorda que foi uma das pessoas a quem lhe “acabedou andar a carregar os mortos para o cemitério”. Essa tarefa era desempenhada geralmente pelos mais velhos, mas esses, por aqueles momentos, desapareceram e foi a ele, na altura com 15 anos, e a outros amigos, a quem coube a terrível função.

O comboio parava excecionalmente junto à aldeia e ali se recolhiam os corpos da composição, que eram transportados numa espécie de padiolas para o cemitério, onde eram identificados.

“A notícia surgiu logo em Santa Clara, depois deu em passar ambulâncias de Odemira…”, recorda.

O Sr. Alberto foi ao local do acidente, e sobre este recorda: “Quando lá chegámos, havia ali mortos por todos os lados e muitos feridos. Estes, assim que eram retirados, seguiam logo em carros. O primeiro veículo que lá chegava carregava-os logo”.

Nos dias seguintes, deslocou-se muita gente à aldeia, principalmente familiares que vieram reconhecer as vítimas.

Se o Sr. Alberto Pedras foi parco em palavras, valeu a esta reportagem um outro santaclarense, o Sr. Fortunato Valério, nosso conhecido desde sempre. Partimos ao seu encontro em São Bartolomeu de Messines.

 

O Sr. Fortunato Valério recorda com muita clareza o trágico desastre

Fortunado Valério já era ferroviário e trabalhou na zona do acidente

O Sr. Fortunato tinha à época 20 anos e já abraçara a profissão que desempenharia durante várias décadas, ferroviário. Por acaso do destino, trabalhava naquele dia na via, pouco mais de 600 metros a montante do local do acidente.

Por aquela altura, já tinha tido ordens para retirar os materiais da linha para a passagem do rápido, mas, apesar da suposta proximidade, não ouviram nada, até que um homem surgiu a correr no meio da linha. Perceberam então que algo anormal acontecera, porque isso não era permitido.

A mensagem era breve e concisa: “o rápido descarrilou, está tudo morto!”.

Correram de imediato ao local. O Sr. Fortunato era dos mais jovens e hoje, há distância de 58 anos, refere: “tinha 20 anos e pensava que já era um homem, mas perante aquilo, vi que não era nada”.

Para a barreira haviam sido projetadas seis jovens moças, que estavam mortas e dilaceradas. A máquina descarrilara, cerca de 30 metros antes de encostar à trincheira, seguida de uma carruagem, tendo a seguinte esmagado e passado por cima da primeira, numa amálgama de ferros retorcidos.

Havia gemidos por todos os lados, em suma, um cenário medonho, horroroso e indescritível, de tal forma que todos se interrogaram: “a gente vem aqui fazer o quê?”

Junto a uma carruagem um pára-quedista pedia que lhe cortassem as pernas, saltara do comboio mas o tronco ficara preso. Ainda o tentaram ajudar, mas quando lá voltaram já havia falecido.

Eram também inúmeros os pedidos de água, de tal forma que fez várias viagens até a uma mina próxima para recolher o precioso líquido.

Aqueles dias são recordados pelo Sr. Fortunato com muita clareza, e naquele local acabaria por ficar seis meses. “Ninguém queria ali trabalhar”, e quando o convidaram, foram-lhe dizendo que o trabalho não exigia muito esforço e afinal “estavam todos mortos, já não faziam mal a ninguém”. Vacilou, mas aceitou.

Mas se o cenário era pavoroso, piorava quando as pessoas ali se deslocavam à procura de familiares e não os encontravam: “Nem sequer era os mortos, eram os vivos, tinham lá a mulher, o irmão, a mãe…”

Depois, as autoridades nem sempre facilitavam o acesso aos corpos, depositados sobre oleados num cabeço fronteiro à trincheira, o que motivava violentos protestos de familiares.

Com o passar dos dias, o odor pestilento intensificou-se, enquanto as moscas e vespas invadiam o local.

 

Mortos foram o dobro dos divulgados oficialmente

O comboio Intercidades passa no local, 58 anos depois

Quando lhe perguntámos pelo número de mortos diz “muitos, talvez o dobro” dos divulgados oficialmente. “Só de uma vez, num vagão, foram 44, ajudei eu a carregá-los”.

No cemitério de Santa Clara, refere, “da primeira vez, foram enterrados 37 corpos”, enquanto muitos outros foram depois transladados.

Cada carruagem tinha uma capacidade de 80 passageiros, sendo que, “na primeira, escaparam muito poucos e na segunda ainda morreram alguns”. Depois “encontrava-se um corpo, ou só a cabeça? Sabia-se lá de quem era…”. Aquando a retirada das carruagens do local, com recurso a uma grua, que para ali se deslocou propositadamente do Barreiro, numa viagem demorada a 5 km/h, caíram dos destroços seis corpos. Eram espanhóis e foram enterrados logo ali nas imediações e não contabilizados. A todos estes, garante o Sr. Fortunato, há ainda a acrescentar os que faleceram nos hospitais.

Esta testemunha conta pormenorizadamente a construção da nova linha, paralela ao local do acidente, bem como os dois descarrilamentos que nesta ocorreram. À noite, e face ao frio que ali se fazia sentir, acendiam-se fogueiras para aquecimento e nos primeiros dias também para iluminação.

Se na aldeia de Santa Clara não conseguimos recolher grandes testemunhos, na freguesia de Pereiras-Gare interpelámos um nosso amigo, o Sr. Alberto António, 84 anos de idade, que além de partilhar as memórias daquele fatídico dia, se disponibilizou a levar-nos ao local da tragédia.

O Sr. Alberto revive por alguns instantes o dia 13 de setembro de 1954

Foi então, ali no sítio das Covas, aonde acedemos por uma estrada de terra batida, outrora principal (só sete anos depois do desastre foi construída a atual estrada de ligação de Pereiras à estrada de Monchique), que o Sr. Alberto, com uma voz um pouco emocionada, recuou ao dia 13 de setembro de 1954.

Tinha então 26 anos e naquela segunda-feira transportara todo o dia, na sua carreta, trigo da Herdade da Casa Nova para o celeiro na estação de Sabóia, juntamente com outros 11 trabalhadores da mesma herdade.

Por alturas do desastre, encontravam-se a abeberar as bestas e os bois no pego de Telhares, a escassos quilómetros do local do acidente, e foi aí que tiveram conhecimento dele.

Pela proximidade, terão sido das primeiras pessoas a chegar junto do desastre. “Quando aqui chegámos e ainda antes de subirmos vimos logo três cabeças que haviam rolado pelo aterro da linha até à estrada. Era uma coisa horrível. Alguns dos que me acompanhavam, nem quiseram subir”.

As carruagens entraram dentro umas das outras, “muita gente trespassada, as pessoas, de atrapalhadas que estavam, nem conseguiam fazer as coisas”.

O sangue, “até formou um regato pela trincheira abaixo”, e isso, garante, foi a coisa “mais horrível que aqui apareceu”. “Só quem viu, só quem viu… Enquanto for vivo não me hei-de esquecer, nunca me esqueço disto. Só se me passasse de um todo é que esquecia isto”.

Nos dias seguintes, foram muitos os que acorreram ao local, e também a mulher do Sr. Alberto era para o ter feito: “a minha mulher estava grávida e queria vir ver, mas não aconselharam a vir e ela não veio. Pela idade do meu filho, sei quantos anos há”.

 

O homem que se aproveitou do acidente para enriquecer

Estação de Pereiras na atualidade

Recorda ainda que a desgraça de uns é sempre a sorte de outros e neste acidente tal não foi exceção: “nas Pereiras, havia ali um homem, que já morreu, e que acorreu logo aqui. O gajo era esperto, e, dizem as pessoas, onde ele formou vida foi aqui. As pessoas traziam dinheiro, anéis e fios de ouro, e muitos desses pertences desapareceram”. Os jornais da época referem isso precisamente.

Hoje, o local não é mais que um sítio perdido e isolado no interior do concelho de Odemira, ainda mais que em 1954, pois as casas que lhe estão próximas estão há muito desabitadas.

Aquando a modernização da linha férrea, em 2004, a trincheira foi cortada, e construída, bem próximo, uma passagem superior à via. Por isso, o Sr. Alberto comenta: “isto hoje nem dá jeito daquilo que era”.

No sítio das Covas, nada existe que assinale tão trágico acontecimento na história da ferrovia nacional, erradamente associada a Sabóia, quando na verdade ocorreu na freguesia de Santa Clara-a-Velha, hoje Pereiras-Gare.

Todavia e, por coincidência, no momento em que ali nos encontrávamos passou o comboio rápido Intercidades com destino a Lisboa. O maquinista, pela nossa presença, silvou a locomotiva e pela memória do Sr. Alberto terão resplandecido de novo flashes daquele trágico dia de 13 de setembro de 1954.

Alberto Pedras, Fortunato Valério e Alberto António reconhecem todos que serão hoje dos últimos a poder testemunhar, na primeira pessoa, o desastre do rápido do Algarve, que todos classificam como “a coisa mais horrível” a que assistiram.

 

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E aqui:
Lista de mortos do acidente do comboio rápido em Sabóia

 

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