Há 58 anos o Algarve vestiu-se de luto: o acidente do Rápido em Sabóia

A 13 de Setembro de 1954, um descarrilamento do comboio rápido que ligava o Algarve a Lisboa (Barreiro), entre Pereiras-Gare […]

A 13 de Setembro de 1954, um descarrilamento do comboio rápido que ligava o Algarve a Lisboa (Barreiro), entre Pereiras-Gare e Sabóia (Odemira), ceifou a vida a dezenas de pessoas que nunca chegariam ao seu destino. Foi há precisamente 58 anos.

O ano de 1954 prometia ser diferente. Logo em fevereiro, um manto de neve cobriu todo o Algarve, num cenário insólito e raro nas terras do sul. Também nesse ano a imagem de Nossa Senhora de Fátima visitou a região, percorrendo-a de lés a lés.

Naquela segunda feira, 13 de setembro, encontrava-se a imagem em S. Bartolomeu de Messines e aqui terão embarcado no comboio rápido da tarde vários passageiros, que jamais concluiriam a viagem.

A notícia fria e telegráfica correu veloz: “muitos mortos e feridos graves”. Perante a incerteza, perplexidade e expetativa, uma enorme angústia abateu-se sobre a região. Naquela tarde, às portas do Algarve, aconteceu o maior desastre ferroviário até então ocorrido em Portugal, desde a inauguração do caminho-de-ferro, em 1856.

O comboio semi-direto, mais conhecido por “rápido do Algarve”, era constituído pela locomotiva, a que se seguia um furgão, três carruagens de terceira classe, um vagão-restaurante e duas carruagens de primeira classe.

Toda a composição era metálica, de fabrico americano e similar ao rápido que circulava entre Lisboa e Porto.

O comboio partira de Vila Real de Santo António às 13h16, com hora prevista de chegada ao Barreiro pelas 20h36.

Segundo o jornal “O Século”, em Tunes, a composição esgotou a capacidade, tendo ainda recebido passageiros nas estações de Messines e S. Marcos.

Cerca das 16h30, entre as estações de Pereiras e de Santa Clara – Sabóia, no sítio das Covas (Km 261,427), a máquina “descarrilou arrastando o furgão e as duas carruagens de ter

ceira classe imediatas. A segunda carruagem, entrando pela primeira, cortou-a completamente ao meio, galgando ambas uma barreira de mais de três metros de altura. Em baixo, estendia-se uma grande vala, com 10 a 12 metros, onde mais tarde, foram encontrados cadáveres, para ali projectados”. Foi desta forma que “O Século” descreveu o acidente.

 

Testemunhas descrevem o acidente

Já o lavrador Manuel dos Santos, que da sua horta assistiu à tragédia, entrevistado pelo “Diário de Lisboa”, disse: “vi o comboio saltar da linha, como se fosse uma cabra picada por um insecto”, referindo ainda que se ouviu “um estampido formidável e a locomotiva saltou da linha, levando à sua frente calhas e tudo quanto encontrou, até se cravar entre nuvens de pó, numa barreira adiante”.

Segundo três pedreiros que trabalhavam numa casa próxima, a nuvem foi tão grande que tapou por breves instantes o sol. Seguiu-se um silêncio profundo, que daria lugar, pouco depois, a um “espectáculo pavoroso, a uma confusão diabólica, gritos, choros, pânico, loucura…”.

Apesar do descarrilamento da máquina e de duas carruagens, os passageiros que seguiam na cauda pouco ou nada sentiram.

O desastre, pela gravidade e dimensão, chocou o país e foi destaque na imprensa nacional durante vários dias. No dia seguinte à tragédia, o jornal “O Século” publicou inclusive duas edições, uma das quais profusamente ilustrada. O cenário por demais doloroso foi transversalmente noticiado.

Para o “Diário de Notícias”,“ao longo da linha, destruída num percurso de mais de duzentos metros, viam-se pessoas inanimadas, mutiladas, ensanguentadas. Outras, sem ferimentos, choravam lancinantemente, na comoção da evidência da catástrofe. E, em volta, a solidão da serra abandonada, silenciosa e quieta, tornava maior a angústia da cena sangrenta”.

Os primeiros socorros foram prestados por dois médicos que viajavam no comboio, Dr. António Soares e Dr. Baldet, bem como por três estudantes de medicina, entre eles, António Rocheta e Rui Lucas de Sousa.

Em simultâneo, dois sacerdotes, também eles passageiros, davam absolvição aos moribundos e consolação e auxílio aos demais.

Enquanto isso, os revisores, entre outras pessoas, deslocaram-se a pé, pela linha, às estações de Sabóia e Pereiras, carregando a “notícia terrível e o pedido de socorros”.

 

Socorros chegaram horas depois

O comboio descarrilado

Horas depois chegavam os médicos das localidades vizinhas, Santa Clara-a-Velha, Sabóia, São Martinho das Amoreiras, bem como o governador civil de Beja, que se encontrava em Odemira, e foi ele quem, numa primeira fase, orientou os socorros.

Conhecida a notícia em Beja, foi de imediato formado um comboio socorro, com clínicos e enfermeiros do hospital da cidade.

Alarmados pelo sucedido os bejenses correram, em massa, para a estação, procurando notícias de familiares e amigos que viajavam na composição fatal. O mesmo aconteceu em Lisboa, com centenas de pessoas a precipitarem-se para o Terreiro do Paço.

Também do Barreiro, Funcheira e de Faro partiram para o local do sinistro, comboios socorro, compostos por bombeiros, médicos e enfermeiros. Os primeiros bombeiros a chegar às Covas foram os de Monchique, porém, face à dimensão da catástrofe e à exiguidade da ambulância, transportaram somente dois feridos, em “estado gravíssimo”, para o Hospital de Portimão.

Além da ambulância dos bombeiros de Monchique, estiveram também no sítio do desastre, uma de Odemira, e uma outra da Cruz Vermelha de Beja.

Enquanto chegavam os primeiros socorros, as populações vizinhas, conjuntamente com familiares dos passageiros, acorreram ao local, concentrando-se ali mais de sessenta automóveis e alguns autocarros. Para ali se deslocaram também militares da GNR de Sabóia, Colos, Aljustrel e elementos da PSP, vindos do Algarve.

Os primeiros feridos, cerca de quarenta, foram transportados de comboio para Beja, onde chegaram cerca da meia-noite. Apesar da hora tardia, eram aguardados por milhares de pessoas que ali esperavam ansiosamente informações do acidente.

Na realidade e apesar de algumas notícias referirem que tudo correra sobre a melhor organização, os primeiros socorros terão chegado ao local somente duas horas após o sinistro e só sete horas depois os feridos davam entrada num hospital.

Alguns destes seriam logo na manhã seguinte transferidos para o Hospital de S. José, em Lisboa. Já o Algarve apenas receberia os dois sinistrados referidos, em Portimão.

Se os feridos foram encaminhados para os hospitais, os restantes passageiros seguiriam viagem numa outra composição. À sua paragem nas estações seguintes, viviam-se momentos de alegria pelos familiares que viam descer os seus entes queridos, mas também de medo e terror, quando estes não apareciam.

 

Desencarceramento durante a noite

Familiares vigiam os trabalhos de desencarceramento

Durante toda a noite, decorreram os trabalhos de desencarceramento, bastante dificultados pela posição instável das carruagens, que ameaçavam despenhar-se sobre um precipício, e, acima de tudo, pela fraca luminosidade.

Sobre estes trabalhos, escreveu o DN: “por entre os ferros torcidos e as madeiras partidas. Os homens das brigadas de serviço moviam-se como fantasmas, à luz de archotes. (…) à procura e recolha de corpos e despojos dos malogrados passageiros”.

Em simultâneo, uma centena de trabalhadores empenhavam-se incessantemente na construção de uma linha de desvio com o objetivo de restabelecer a circulação ferroviária.

Esta linha, com uma extensão de cerca de duzentos metros, ficaria concluída cerca das 14h00 do dia seguinte, mas nela haveriam ainda de descarrilar dois comboios, felizmente sem gravidade.

Em paralelo ao transporte dos feridos, os cadáveres, “horrorosamente mutilados”, eram colocadas sobre um encerado negro, junto a uma azinheira, e posteriormente transportados de comboio para o cemitério de Santa Clara, para identificação.

Esta nem sempre era fácil, e foram várias as descrições do vestuário das vítimas publicadas nos jornais, para assim coadjuvar a terrível tarefa.

Embora a imprensa desse grande destaque aos feridos e às vítimas mortais, com a publicação de nomes, fotografias, naturalidade, moradas, etc., nunca foi noticiado o número total de mortos. É preciso não esquecer que, nesses tempos, estava em vigor a Censura do Estado Novo, que não deixava passar esse tipo de informações.

No dia seguinte, ao “fatídico e brutal sinistro”, o “Diário de Lisboa” contabilizava trinta e quatro mortos e trinta e quatro feridos, o jornal “O Século”, na mesma edição, apenas dezassete mortos e vinte feridos, já o “Diário de Notícias” ficava-se pelas quinze vítimas mortais e mais de vinte feridos.

Nos dias seguintes, o número de vítimas foi-se elevando, mas quer “O Século”, quer o DN, nunca ultrapassaram os trinta mortos.

Mesmo assim os nomes das vítimas estiveram sempre envoltos de alguma contradição. Ainda a 17 de setembro “O Século” informava: “presume-se que sob a carruagem que ficou cortada em duas (…) haja mais corpos, pois no local paira um odor incomodativo pelo que (…) o Dr. Arnaldo Portas, médico da CP, ordenou o emprego de fortes desinfectantes”.

Quatro dias depois, o mesmo diário noticiava que “tais odores nauseabundos”, segundo a CP, seriam de “géneros alimentares putrefactos e talvez de alguns despojos das vítimas”.

 

Número verdadeiro de vítimas nunca se chegou a saber

O número oficial de vítimas cifrou-se nas trinta e quatro, mas ainda hoje este valor é posto em causa. Estas eram maioritariamente algarvias, ou aqui residentes: só de Loulé faleceram sete pessoas, de Olhão cinco, as outras repartiram-se por Poço Barreto (Silves), Pêra, Portimão, Faro, etc., etc.

A 15 de Setembro, dois dias depois do acidente, ocorreram os primeiros funerais, alguns corpos foram mesmo sepultados no cemitério de Santa Clara (pelo menos seis), e sobre estes protestou o jornal “A Voz de Loulé”: “foram lançados à vala comum (…) sem uma tábua a cobri-los”, alegando que a empresa ferroviária deveria ter adquirido os caixões. “Seria insuportável para o orçamento da CP enterrar com alguma misericórdia os mortos dum acidente do seu comboio?”.

Outros foram transportados para as terras de origem Silves (quatro), Portimão (três), Olhão (três), Tunes (dois) e também para Beja (dois), Aljustrel (dois), Salvada, Lisboa, Sintra, Relíquias, etc., etc.

Enquanto isso, narrativas de famílias aniquiladas, outras desfeitas, crianças lançadas pelas janelas, que sobreviveram, ficando órfãs, ou ainda um noivo que viajava para a boda e que ali perdeu a vida, mas também coincidências felizes, preencheram as colunas dos jornais.

Multiplicaram-se ainda notícias do desaparecimento dos pertences de feridos e mortos, brincos, cordões de ouro, carteiras, etc., de tal forma que, a 20 de Setembro, chegavam a Beja agentes privativos da CP para proceder a averiguações de forma a localizar os bens extraviados.

Apesar de as conclusões do inquérito ao acidente serem anunciadas para 18 de setembro, elas foram progressivamente adiadas e só em outubro foram conhecidas.

A “Gazeta dos Caminhos de Ferro”, de 1 de novembro, publicou-as na íntegra. Em síntese, o desastre foi o resultado de “uma conjugação momentânea de vários factores”, principalmente, “ao chanfro da cabeça do carril ter atingido um limite perigoso e ao facto do verdugo do aro da roda dianteira direita do bogie ter um desgaste muito acentuado”, a que se juntou a velocidade de circulação próxima do limite máximo (60 km/h), as irregularidades da curva, oscilações anormais do material circulante, entre outros.

Volvidos 58 anos do fatídico desastre do “rápido do Algarve”, este ocupa hoje a 4ª posição na tabela dos piores acidentes ferroviários registados em Portugal. Outros acidentes têm ocorrido no sul do país e mesmo no Algarve nos últimos anos, mas felizmente nenhum outro atingiu até hoje, a gravidade do descarrilamento ocorrido em Sabóia, a 13 de setembro de 1954.

 

Leia mais sobre este tema aqui:
Memórias do acidente do “rápido do Algarve”, 58 anos depois

e aqui:
Lista de mortos do acidente do comboio rápido em Sabóia

 

 

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