A viagem de comboio a Lagos, 90 anos depois: 30 de julho de 2012

Viajar de comboio constitui ainda hoje uma aventura, não só pelas adversidades a que geralmente estamos sujeitos, mas essencialmente pelas […]

Viajar de comboio constitui ainda hoje uma aventura, não só pelas adversidades a que geralmente estamos sujeitos, mas essencialmente pelas paisagens que proporciona. Embora no Algarve já não seja possível viajar de janela aberta, para, de cabelos ao vento, observar melhor o panorama (as carruagens são todas climatizadas), a viagem vale a pena.

Com este espírito e com o objetivo de assinalar o 90º aniversário da inauguração da linha férrea de Portimão a Lagos, no passado dia 30 de julho, viajámos de comboio até à cidade dos Descobrimentos. Por motivos logísticos, uma parte do grupo embarcou em Tunes e a outra em Silves, tendo-se optado pela composição cujo horário se aproximava mais do utilizado pelo comboio inaugural em 1922 (11h40).

Como é apanágio, chegámos a Tunes bem cedinho, para adquirir o bilhete e explorar a estação. Esta encontrava-se deserta, mas, momentos depois, após a chegada do comboio Alfa Pendular, encheu-se de passageiros.

Há 90 anos a viagem direta de Lisboa a Lagos demorou cerca de 10h40, com o percurso de barco (Lisboa-Barreiro) incluído. Hoje, uma viagem de comboio Alfa Pendular, procedente de Porto-Campanhã, com transbordo em Tunes, demora até Lagos apenas 7h20.

Diariamente quatro comboios ligam diretamente o Algarve à “capital do Norte”, atingindo em vários locais do percurso mais de 220 km/h.

Porém, como apenas o troço entre Tunes e Faro está eletrificado, não é possível a estas composições chegarem a Lagos ou a Vila Real de Santo António, pelo que todos os passageiros destinados às estações até Lagos ficam em Tunes. Por esse motivo, o cais da linha 2 encheu-se de um momento para o outro. Eram essencialmente portugueses, mas havia também alemães e espanhóis.

Atualmente, tal como no passado, as informações são parcas na ferrovia portuguesa, e assim ali ficou aquela mole humana, completamente atónita, à procura, no vazio, do comboio que as levasse ao destino.

Cerca de 15 minutos após a partida do Alfa, entrou na mesma linha uma automotora, proveniente de Faro com destino a Lagos. Para quem viajou no mais moderno comboio português, as diferenças eram evidentes: desde logo a primeira composição é alvo de marcação de lugar, apresenta um excelente conforto; já na segunda, os lugares são ocupados livremente e o conforto é relativo.

Como não havia lugares para tanta gente, muitos viajaram de pé. Quanto a nós, não tínhamos a tarefa facilitada, não que estranhássemos o conforto, afinal não tínhamos viajado no Alfa, mas os vidros eram espelhados, e encontravam-se bastante sujos. Tirar fotografias ia ser árduo.

Após o silvo da automotora, a composição iniciou a marcha. A aldeia de Tunes, criada a partir da bifurcação ferroviária, ficava para trás. O comboio passou pouco depois junto à central termoelétrica e logo a seguir à novíssima central fotovoltaica.

O pomar tradicional de sequeiro algarvio predomina, a par de alguma vinha, para, depois de Algoz, dar lugar essencialmente a citrinos.

A primeira paragem foi em Algoz, notando-se, da linha férrea, o crescimento urbano que a vila tem sido alvo nos últimos anos. Daqui saíram também milhares de tijolos produzidos nas cerâmicas da zona.

Após Alcantarilha-Gare, observam-se os campos do antigo Morgado da Lameira, não cobertos de figueiras, como os descreveu Raul Proença, no seu Guia de Portugal em 1927, mas de laranjeiras, e, mais ao fundo, o complexo turístico Amendoeira Golf Resort, cujo campo de golfe se estende até quase marginar a linha.

A paragem seguinte é Poço Barreto, pequeno lugarejo onde, tal como em Alcantarilha, ainda subsiste um velho armazém de mercadorias, do tempo em tudo se expedia pelo caminho-de-ferro.

A composição segue viagem e pouco depois evidenciam-se a sul os arrozais da Vala, com o verde que lhes é peculiar e ao fundo um viaduto da Via do Infante.

Mais à frente, à direita, espreita-se a Corticeira Amorim a expelir o vapor caraterístico, que nos lembra que Silves, escondida lá atrás no vale do Arade, foi outrora a capital corticeira do país, enquanto à esquerda o campo de golfe de Vila Fria (Silves Golf Course) marca a paisagem.

A automotora prossegue em marcha acelerada, afinal toda a linha foi recentemente renovada (entre 2009 e Abril 2011), com a substituição de carris, das travessas de madeira por betão monobloco, e pelo reforço de balastro. Foi igualmente implementado um novo sistema de segurança e eliminadas várias passagens de nível.

Como nota negativa desta intervenção, refira-se o encerramento da maioria das estações, à exceção de Portimão e Lagos.

Pouco antes de chegarmos a Silves-Gare, visualizamos, bem junto à linha férrea, a fábrica de sumos Lara Laranjas do Algarve. Esta unidade, única na região, tem evitado que muitas toneladas de laranjas sejam remetidas para aterro, como acontecia num passado não muito distante.

A gare silvense, localizada a sul da cidade, foi uma das vítimas do progresso: encerrou com a modernização da via e o seu abandono é bem evidente. No entanto, são vários os passageiros que aqui tomam o comboio, entre eles os nossos companheiros de viagem. O revisor, a quem cabe cobrar o bilhete, esforça-se para atender os novos clientes. Depois de Silves, a linha inflete para a esquerda, e por breves instantes só se veem pomares de laranjeiras, viçosíssimos, vigiados ao fundo pela serra de Monchique.

Depois da passagem por uma pedreira cujas crateras marcam a paisagem, bem como por velhos edifícios de passagens de nível, perdidas no meio do coberto vegetal mediterrânico, avista-se Estômbar. O cuidado jardim que margina a rua que acede à gare contrasta com o estado degradado e abjeto da estação. Logo ali ao lado, a vila desce graciosamente o morro, coroado pela igreja paroquial.

A paragem do comboio em todas as estações e apeadeiros do percurso facilita-nos o registo fotográfico, bem como o vidro da porta, que se encontrava relativamente limpo.

De novo em marcha, a automotora cruzou a antiga nacional 125, por uma ponte (a chamada Ponte Charuto), e momentos depois chegamos a Ferragudo-Parchal. Eis a estação que serviu Portimão entre 15/02/1903 e 29/07/1922.

A área que ainda hoje ocupa, essencialmente a nascente, demonstra bem a importância de outrora. Naquele espaço, agora vazio, terão existido diversas linhas de resguardo. Com novo apito, e nova partida, entramos na linha inaugurada há precisamente 90 anos.

A ponte é antecedida por uma longa curva, já em pleno leito do rio Arade. A paisagem é magnífica, sublime, o azul celeste do céu invade as águas calmas do rio.

A norte observam-se as novas pontes rodoviárias, o estuário do Arade na sua plenitude, mas também a antiquíssima Mexilhoeira da Carregação, porto fluvial, por onde os nossos avoengos exportaram os produtos regionais de antanho.

A sul, a velha ponte rodoviária, os prédios da cosmopolita Portimão, entre eles a torre da Igreja Matriz da cidade, e ainda o passeio ribeirinho. Aqui e ali, algumas chaminés das antigas fábricas de conservas a lembrarem o grande centro piscatório que foi Portimão.

Após uma paragem considerável na gare da cidade, cuja plataforma ferroviária foi em Janeiro último renovada, o comboio iniciou de novo a marcha, em meio essencialmente urbano. Este predomina até quase a Montes de Alvor. Aqui, e apesar da marcha veloz da composição, vislumbra-se o acentuado estado de degradação de que a estação padece, sorte igual à de Odiáxere.

Ao longe, observa-se o conhecido Hotel Le Méridien Penina, pioneiro entre os resorts do Algarve. A ele está também associado a construção do primeiro campo de golfe em Portugal, agrupado a um resort.

A linha margina uma extensa área agrícola muito cuidada, qual jardim de árvores de fruto, sempre sob observação atenta da serra de Monchique. Campos ceifados demonstram que ainda se cultivam cereais no Barlavento algarvio. Pontualmente descobrem-se amendoeiras, figueiras e alfarrobeiras.

O atravessamento da Ribeira do Farelo e a zona de sapal adjacente lembra que o coração da Ria de Alvor está cada vez mais próximo. Mas é depois da Mexilhoeira Grande, cuja estação, apesar de encerrada, mantém alguma dignidade, que a ria surge com todo o seu esplendor. O céu azulíssimo confunde-se com as águas calmas da laguna, ao lado o mar espreita por entre as dunas.

Em Vale de Lama, uma piscicultura margina a linha. O comboio, depois de uma inflexão pelo interior, aproxima-se cada vez mais da linha de costa, ladeando as dunas ocupadas por um campo de golfe, enquanto à direita são inúmeros os aldeamentos turísticos.

Estamos em plena baía de Lagos, ao fundo as majestosas rochas matizadas de ouro contrastam com o azul intensíssimo do céu e do mar. A paisagem é soberba e graciosa.

Avistamos o bairro dos “Índios da Meia Praia”, imortalizado por Zeca Afonso, e de seguida o comboio para na Meia-Praia. Já não há estação, nem vestígios do edifício, o local é apenas apeadeiro, e aqui descem pessoas para uma tarde de praia, que nos espreita acolá.

Logo ali encontra-se um velho forte, num estado deplorável, esquecido e vandalizado, a aguardar melhor sorte. Toda esta área, graças ao Plano de Ordenamento da Orla Costeira, apresenta-se com passadiços sobrelevados e apoios de praia cuidados.

Estamos cada vez mais perto da cidade e, pouco depois do Km 347 da linha, chegamos à novel estação de Lagos, e com ela ao término da nossa viagem. Poucos minutos passam do meio-dia.

Noventa anos depois não há foguetes, nem vivas à República, nem autoridades ou ministros. Os passageiros saem apressados do comboio, inundam o cais e desaparecem para lá da estação. No seu interior, dois panfletos evocam a chegada do comboio em 1922. Mais além, situa-se a velha estação, que marcou durante décadas a paisagem de Lagos, numa comunhão feliz e harmoniosa, até à construção da marina.

Votada ao abandono desde agosto de 2006, ali se encontra moribunda a aguardar um outro projeto imobiliário, que tarda em arrancar, se é que algum dia se concretizará.

Bem próximo e com igual destino encontra-se a única secção museológica ferroviária do Algarve, na antiga cocheira, edifício único no país. Tudo isto numa cidade turística, onde esta atividade constitui o motor da economia local e regional.

Já não há fábricas de conservas em Lagos, nem se exportam frutos secos ou cereais, há sim turistas, como os espanhóis, nossos companheiros de viagem, que a Lagos veem gozar as suas férias.

Marcamos regresso para as 14h01, porém, um pequeno atraso dilata-nos a viagem para as 17h01, pois naquele intervalo não há comboios. Face ao constrangimento e por motivos inadiáveis, parte do grupo seguiu viagem de autocarro.

Voltamos a percorrer a cidade, e às 17h01, após limparmos o vidro da porta, partimos numa automotora idêntica à da manhã. As paragens seguintes são profícuas em passageiros. Em Portimão, uma rapariga de um grupo de 10 adolescentes, antes de abandonar a composição, alvitra: “Bem muito obrigado por mais esta viagem! Assim, como poderão eles ter dinheiro?”. Todo o grupo viajou gratuitamente, o revisor não chegou até ali…

Por entre o silvo da automotora e com as mesmas paragens, as mesmas paisagens mas com outros aspetos e cores, pela alteração da luminosidade do astro sol, chegamos a Tunes por volta das18h00.

A linha de turismo, como prognosticou o jornal “O Século” em 1922, serve hoje, 90 anos depois, centenas de turistas, que, dos pontos mais recônditos do país e do mundo, procuram o Algarve e Lagos para gozarem as suas férias.

Turistas tratados com menosprezo pela ferrovia, parca em informações, com um conforto duvidoso, estações abandonadas e vandalizadas, horários desfasados, até um museu desprezado existe, em pouco mais de 45 quilómetros de linha entre Tunes e Lagos.

Apesar de tudo isto, a paisagem é sublime e única, e afinal viajar de comboio é sempre uma aventura e, em último caso, há sempre um meio de transporte alternativo à nossa espera.

 

Autor (do texto e das fotos): Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional

 

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