Arqueólogos em busca da origem da Estela do Guerreiro encontram ponta de lança

Os arqueólogos (re)encontraram o local onde, em 1972, foi descoberta a chamada «Estela do Guerreiro», uma das mais emblemáticas pedras […]

«Estela do Guerreiro»

Os arqueólogos (re)encontraram o local onde, em 1972, foi descoberta a chamada «Estela do Guerreiro», uma das mais emblemáticas pedras epigrafadas com a escrita do Sudoeste.

E encontraram também uma bela ponta de lança em ferro, com cerca de 2500 anos, que desde o fim de semana está exposta no Museu da Escrita do Sudoeste Almodôvar (MESA).

Estes são os principais resultados de dois anos de escavações arqueológicas na Necrópole da Abóbada, freguesia do Rosário, no concelho baixo alentejano de Almodôvar, e que no sábado foram apresentados pelos arqueólogos Samuel Melro e Pedro Barros numa sessão na vila, no âmbito das Jornadas Europeias do Património.

Samuel Melro, salientando que se trata da apresentação de resultados «muito preliminares» dos trabalhos arqueológicos feitos naquela necrópole em 2010 e 2011, lembrou que esta intervenção se integra na segunda fase do Projeto Estela, que em 2008 e 2009, numa primeira fase, passou por uma extensa campanha de prospeções no terreno, em vastas áreas da serra algarvia e do Baixo Alentejo, num vasto interland formado pelo interior dos concelhos de Loulé, Silves, e ainda Almodôvar, Ourique.

O arqueólogo salientou que o objetivo do Projeto Estela «não é decifrar em termos linguísticos» a ainda enigmática e sempre controversa escrita do Sudoeste, mas «investigar os contextos histórico-arqueológicos da sociedade de onde provém esta escrita».

Um dos objetivos principais desta campanha de escavações na Necrópole da Abóbada era precisamente tentar identificar o local exato onde, em 1972, foi encontrada a hoje famosa «Estela do Guerreiro», peça principal e símbolo do MESA.

Esta estela, uma laje em xisto, foi desde sempre considerada excecional por conter uma rara associação da escrita do Sudoeste com a representação de uma figura humana. E a notícia sobre este achado, feita por arqueólogos enviados ao local, já dava conta da existência de dois monumentos funerários delimitados em pedra.

Enquanto decorria uma “guerra” institucional em volta da entidade que deveria ficar com a guarda da estela (ver texto mais abaixo), o local onde ela tinha sido encontrada foi votado ao abandono e sofreu, pouco depois, uma grande e profunda lavra mecânica, que destruiu muitos dos vestígios arqueológicos mais superficiais que então ainda poderiam existir.

Trinta e oito anos depois desta descoberta, os arqueólogos voltaram ao local. E constataram isso mesmo: que tinha sido seriamente danificado por trabalhos agrícolas. «O que observámos foi um amontoado de pedras e já não os dois monumentos funerários constantes da notícia de 1972», recordou Samuel Melro.

Após a desmatação da pequena área junto ao Rio Mira, foi então possível identificar os restos desses túmulos e ainda ossos humanos cremados.

Os investigadores identificaram duas estruturas tumulares definidas em pedra, quadrangulares, adossadas a um muro central. Num dos túmulos, havia ainda ossos cremados, bastante bem preservados e no local onde teriam sido originalmente depositados.

Identificaram também duas outras formas de enterramento: um conjunto de quatro sepulturas em fossa simples, «covachos onde eram colocados os ossos cremados», e ainda um terceiro tipo, constituído por covachos também abertos na rocha, mas tendo no seu interior uma pequena urna cerâmica, onde eram depositados os ossos, também eles cremados.

Necrópole da Abóbada: o covacho com a urna cerâmica

Analisando estes três tipos de enterramentos, os arqueólogos e o antropólogo físico David Gonçalves chegaram já a várias conclusões preliminares: em primeiro lugar que os corpos eram cremados num local e os seus ossos cremados depositados noutro (ou seja, que esta era uma necrópole com enterramentos de deposição secundária), que em cada um dos túmulos eram depositados os restos osteológicos de uma só pessoa, mas não a totalidade dos seus ossos, e ainda que na pira funerária eram cremados os cadáveres completos e não desmembrados e que esta atingia temperaturas muito intensas, para fazer uma cremação completa.

A análise antropológica que será feita deste espólio osteológico pelo antropólogo David Gonçalves permitirá, segundo Samuel Melro, «reconstituir os rituais funerários» destes alentejanos de há 2500 anos, da Idade do Ferro.

Foi precisamente um destes túmulos constituídos por uma cova pequena (covacho) com uma pequena urna cerâmica no seu interior que os arqueólogos identificaram como sendo o local exato onde, em 1972, tinha sido descoberta a Estela do Guerreiro.

A estela, recordou Samuel Melro, segundo as informações orais recolhidas há quase 40 anos já não estava, então na sua posição original, ao alto e com as inscrições bem visíveis, mas deitada, com a face epigrafada para baixo, a servir de tampa ao enterramento com a urna. Tratou-se, por isso, de um reaproveitamento (ler texto abaixo).

Os investigadores, com mil cuidados, retiraram a urna cerâmica do interior do covacho, mas o seu débil estado de conservação  dificilmente se conseguirá, mesmo com aturado trabalho de restauro, criar condições para ser exposta ao público.

Além da importante (re)descoberta do local onde estava famosa Estela do Guerreiro, num covacho mesmo ao lado os arqueólogos tiveram outra boa surpresa: encontraram uma ponta de lança em ferro, virada a oeste.

A ponta de lança em ferro no local onde foi descoberta

O artefacto, relativamente comum em contextos arqueológicos desta época da Idade do Ferro na zona, revelou-se, contudo, de grande beleza. A ponta de lança em ferro foi tratada por Matthias Tissot, no Museu Nacional de Arqueologia, e acabou por pôr em evidência a delicadeza e perfeição do trabalho, como se pode agora ver na fotografia acima ou, mais diretamente, no Museu da Escrita do Sudoeste, em Almodôvar, onde é também uma das mais recentes peças da exposição «A Vida e a Morte na Idade do Ferro».

«O trabalho imediato de conservação neste achado permitiu esta pequena surpresa, que, se esse trabalho tivesse ficado por fazer, nunca se revelaria», comentou Samuel Melro. Um comentário tanto mais pertinente quando se sabe que os conservadores restauradores dos Museus Nacionais foram dispensados, devido aos cortes orçamentais.

A ponta de lança foi entretanto datada entre os meados do século V antes de Cristo e a primeira metade do século IV a.C., ou seja, teria à volta de 2500 anos.

A ponta de lança após o trabalho de conservação e restauro

Outras conclusões preliminares dos investigadores são que a Necrópole da Abóbada se integra perfeitamente no chamado «mundo do Ferro de Ourique», uma realidade que lançou o Baixo Alentejo como um dos grandes centros da Idade do Ferro em Portugal.

Na Abóbada já não há, contudo, a presença de grandes monumentos funerários de traça circular, mas monumentos mais tardios de planta retangular. Isso, explicou Samuel Melro, foi corroborado pelo ritual funerário dos ossos cremados e da cronologia ponta de lança.

No entanto, devido à destruição do sítio, não se consegue saber se os túmulos definidos em pedra eram ou não contemporâneos dos covachos, ou se, por exemplo, os diferentes tipos de estruturas funerárias traduziam uma diferença social entre os indivíduos aí enterrados.

No âmbito do Projeto Estela, os arqueólogos consideram que é fundamental continuar os trabalhos, nomeadamente em «contextos de habitat». Por isso, pretendem investigar de seguida os povoados do Casal Ventoso, e sobretudo da Portela da Arca, associado à necrópole dos Mouriços, tudo no concelho de Almodôvar. Tudo para, segundo Samuel Melro, «procurar obter a imagem mais próxima da vivência e do percurso destes povos», no «território da escrita do Sudoeste».

 

Almodôvar aposta no património para promover o desenvolvimento

Apresentação dos resultados das escavações na necrópole da Abóbada

«O património é um elemento fundamental da estratégia de desenvolvimento do concelho de Almodôvar» assegurou António Sebastião, presidente da Câmara local, no sábado, na sessão de apresentação dos resultados de dois anos de escavações arqueológicas na necrópole da Idade do Ferro da Abóbada.

É que, acrescentou o autarca, o património pode «atrair visitantes, criar empregos». E isso já está a acontecer neste município do Baixo Alentejo. Daí o apoio pioneiro da Câmara Municipal de Almodôvar ao Projeto Estela desde 2008 e às escavações arqueológicas nas Mesas do Castelinho que decorrem há mais de 20 anos.

Face mais visível desta aposta da autarquia no património é o Museu da Escrita do Sudoeste (MESA), que, segundo garantiu António Sebastião, já está a ter «um impacto positivo». «A Câmara de Almodôvar tem todo o interesse na valorização do seu património, no investimento que valoriza o nosso concelho e cria condições para a sua sustentabilidade futura», disse ainda.

Além do MESA, onde está patente a exposição «Vida e Morte na Idade do Ferro» (desde este fim de semana enriquecida com duas peças novas – a ponta de lança da necrópole da Abóbada e a estela epigrafada do Monte Gordo), do apoio ao Projeto Estela, a Câmara almodovarense lançou na sexta-feira o «Guia de Almodôvar – Território da Antiga Escrita do Sudoeste».

E já estão também em curso as obras de adaptação do antigo Convento de S. Francisco a Centro Multiusos, também com funções culturais, ao mesmo tempo que se prevê a musealização do sítio arqueológico e criação do centro de interpretativo das Mesas do Castelinho.

Uma aposta clara nas vantagens que o Património pode trazer a este concelho do Baixo Alentejo. No atual contexto de crise e contenção orçamental, o presidente da Câmara António Sebastião fez questão de salientar, em declarações ao Sul Informação, que quer transformar Almodôvar num «oásis» do Sul de Portugal.

O Projeto Estela tem como entidades associadas as Câmaras de Almodôvar e de Loulé, o MESA (Museu da Escrita do Sudoeste Almodôvar) e a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Os arqueólogos responsáveis são Samuel Melro e Pedro Barros, contando com Amílcar Guerra e Carlos Fabião como consultores científicos. Susana Estrela e Artur Rocha são arqueólogos colaboradores, David Gonçalves é o antropólogo físico. Rui Cortes e Rui Santana (Câmara de Almodôvar) e ainda Isabel Luzia e Alexandra Pires (Câmara de Loulé) são também consultores.

 

A história atribulada da descoberta da «Estela do Guerreiro» 

Vista geral da necrópole da Abóbada

A estela foi encontrada em 1972, por Joaquim Miguel, um trabalhador agrícola que estava a lavrar uma área da Herdada de Abóbada. Esteve primeiro exposta numa taberna, o Retiro dos Caçadores, na vizinha vila de Ourique.

Mas a notícia deste achado depressa chegou ao então diretor do Museu Nacional de Arqueologia (MNA), que oficiou à GNR de Almodôvar para que fosse buscar a estela à tal taberna. O MNA enviou ainda o arqueólogo Caetano de Melo Beirão para que este procedesse ao transporte da estela para o museu, mas este não conseguiu cumprir esta missão, porque, entretanto, as autoridades distritais de Beja intervieram e exigiram que a «Estela do Guerreiro» não fosse levada para a capital.

O resultado é que a estela acabou por ficar depositada no Museu Distrital de Beja, e agora pode ver-se uma réplica no Museu da Escrita do Sudoeste Almodôvar (MESA).

 

As polémicas à volta da Escrita do Sudoeste

As estelas epigrafadas são blocos alongados em pedra, na sua maioria em xisto, com superfície regular e destinada a ser fixada de forma vertical no solo, que continham inscrições marcadas na pedra . Estas estelas têm sido até agora a principal biblioteca descoberta com a misteriosa escrita do Sudoeste.

E misteriosa porquê? A maioria dos investigadores aponta-a como sendo uma forma de escrita com origem fenícia, da qual se conhecem já os símbolos e até os sons a que corresponderiam, mas que nunca foi decifrada, uma vez que não se conhece a língua exata a que esses símbolos correspondiam. É como se nós pudéssemos ler os sons da escrita chinesa, por sabermos a que som corresponde cada ideograma, mas não pudéssemos ler e compreender o que está escrito, por desconhecermos a língua.

No total, conhece-se perto de uma centena de inscrições em pedra, datáveis de entre os séculos VIII e V antes de Cristo. Mas recentemente, durante escavações no Castelo de Moura, surgiu uma inscrição destas num fragmento de cerâmica proveniente de estratos datados do século IV a.C, ou seja, de 400 anos antes de Cristo.

De tal forma que, Amílcar Guerra, investigador e professor universitário que se tem dedicado a estudar a escrita do Sudoeste, salientou que «antigamente dizia-se que essa escrita acabou no século V [a.C.]. Agora é melhor não falar na sua morte tão cedo», porque essa escrita, mais do que morrer e desaparecer, «pode ter perdido e alterado alguns dos seus aspetos formais», mas ter-se mantido por mais tempo.

Até hoje, nunca foi encontrada uma estela no seu sítio original, fincada no terreno, o que também tem contribuído para dificultar a definição da sua cronologia e funcionalidade exata. As estelas têm sido encontradas sempre derrubadas e muitas vezes reutilizadas em usos posteriores – no pavimento de uma rua, como no povoado romano das Mesas do Castelinho, a servir de tampa a um túmulo posterior, como na necrópole da Abóbada, ou até na parede de casas e montes contemporâneos, servindo de material de construção.

Partindo do caso da Abóbada, Amílcar Guerra salienta que não se sabe ainda «o porquê de terem sido reaproveitadas estas estelas nas necrópoles mais tardias, 100 a 150 anos depois», mas colocou a hipótese de as estelas pertencerem originalmente a uma fase mais antiga do cemitério, sendo depois reaproveitadas, nomeadamente como tampas de túmulos.

A chamada «Estela do Guerreiro», pelo facto de associar a escrita epigrafada à representação de uma figura humana, é uma das mais conhecidas. Mas até na interpretação do que representará essa figura há controvérsia. Augusto Ferreira do Amaral, advogado e estudioso destes temas, autor do livro sobre o tema «Neo-Hititas em Portugal», editado este ano pela Aletheia, foi uma das pessoas que esteve em Almodôvar este sábado e não hesitou em afirmar que a estela não representa um «guerreiro, mas uma divindade».

Nesse livro, Ferreira do Amaral contesta até que a origem da escrita seja fenícia, como é comummente aceite pelos investigadores, defendendo que «será oriunda do sudoeste da Anatólia. E a língua será indo-europeia anatólica, muito próxima do luvita e do hitita». A ser assim, defende, «haverá que rever a história da Antiguidade Mediterrânica pré-clássica e das origens do alfabeto».

No entanto, segundo Amílcar Guerreiro, a escrita do Sudoeste ou Tartéssica, da Idade do Ferro no Sul de Espanha e Portugal, foi desenvolvida pelos Tartessos, o nome pelo qual os gregos conheciam a primeira civilização do Ocidente, que se terá desenvolvido nas zonas das atuais regiões da Andaluzia espanhola, Baixo Alentejo e Algarve.

A escrita dos Tartessos, que tiveram influências culturais de Egípcios e Fenícios, segundo Amílcar Guerra, «é distinta das dos povos vizinhos, complexa e permanece indecifrável até à atualidade».

 

Saiba mais sobre o Projeto Estela em http://projectoestela.blogspot.com

Todas as fotos são da autoria do Projeto Estela, à exceção das fotos da Estela do Guerreiro e da apresentação (Elisabete Rodrigues) e da Ponta de Lança restaurada (Matthias Tissot)

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